Dia 8 de abril de 1719. Passarinhos cantavam. O sol era escaldante como agora. Agrupados, os senhores aguardavam a assinatura da ata de fundação, encabeçada pelo bandeirante sorocabano Pascoal Moreira Cabral. Pobre eram pobres. A escravidão oficial recebia as bênçãos da Santa Madre. Índios podiam ser capturados – não eram considerados seres humanos.
Impecável num terno verde sob medida de S&C, tradicional alfaiataria paulistana, Moreira Cabral preparava-se para o momento solene – botar o jamegão no papel. Ao seu lado seus embarcadiços. Baixa umidade do ar. Calor imenso. Ameaça de chuva. O bandeirante suava muito.
Num desnível do terreno aurífero, Moreira Cabral escorregou. Não foi ao chão, mas o movimento em falso causou constrangimento e apreensão aos que presenciaram a cena. Do bolso de seu paletó recheado de dinheiro caiu um maço de notas. Para evitar comentários maliciosos, o bandeirante disse que a dinheirama era de seu mano querido.
…
Sites e blogs que não recebem recursos dos poderes e órgãos públicos aceitam colaboração financeira. Este blog, também, pelo PIX 13831054134 do editor Eduardo Gomes de Andrade
…
– Ooooooooh. Concordaram os presentes porque sabiam a força que o homem tinha.
Um jovem que acompanhava Moreira Cabral lamentou o tropeção que causou o grito sufocado dos participantes. Condoído disse a um colega ao lado que o bandeirante sofreu vertigem com o calorão: – ‘Crima nubrado’. O outro sugeriu: – dá uma toalha azul pra ele.
Blém-blém-blém-blém batia o sino da Igreja Nossa Senhora do Rosário, símbolo do catolicismo, chamando pra missa das 6 horas. Dono das Lavras em seu entorno, Miguel Sutil estava ocupado e não iria. Fechado em seu quarto com Cassombombo, seu escravo sexual, tinha mais o que fazer. Cassombombo era o negro que o atendia sexualmente, segundo o escritor Ricardo Guilherme Dickie.
Cassombombo não foi o único negro humilhado ao longo de três séculos nesse município onde nasceu o herói Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon. São Benedito, o reverenciado santo dos cuiabanos católicos enfrentou marginalização pela branca Santa Madre. Isso mesmo! Na quase tricentenária Igreja do Rosário, no topo do morro à margem do córrego da Prainha não havia espaço para a negritude santificada de Benedito nem de seus devotos. A solução foi a construção de uma capela ao lado do templo dos senhores. Mais tarde a Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito democratizou-se. Em seus bancos, nas manhãs das quintas-feiras, a presença do Comendador João Arcanjo Ribeiro era figura obrigatória, até que uma certa Operação Arca de Noé o afastou daquele convívio cristão.
O ouro jorrava e a população amava a Coroa Portuguesa. Não havia PT, PCdoB nem Psol. Todos rezavam pela mesma cartilha ideológica.
Isso acontecia quando a América Latina era feudo dos reis de Espanha e Portugal. Pouco tempo depois, em 9 de maio de 1748, a Coroa Portuguesa criou a Capitania de Mato Grosso numa área sob domínio de São Paulo. O nepotismo luso mostrou sua força e o rei Dom João VI nomeou seu primo e capitão-general Dom Antônio Rolim de Moura Tavares para governar o território recém-emancipado. Assim surgiu o primeiro grilo que se tem notícia no continente. Mais tarde essa prática seria bem aperfeiçoada e chegamos ao inusitado da terra em segundo e terceiro andares.
Mato Grosso era um imenso vazio demográfico. Cuiabá tinha 32 anos e a aventura em busca do ouro empurrava cada vez mais a fronteira Oeste pra dentro dos domínios espanhóis quando Rolim de Moura fundou Vila Bela da Santíssima Trindade, em 19 de março de 1752, para ser capital do naco de terra que o primão lhe dera para governar.
Até parece com o agora. Um primo do rei governando num palácio construído por mão de obra escrava numa terra conquistada na esperteza agrária pela fragilidade do Tratado de Madri, que por falta de GPS tinha a utilidade de cobertor nas ensolaradas tardes de Mato Grosso.
Em 1822 o Brasil conquistou a Independência enquanto Cuiabá garimpava em paz. Em 28 de agosto de 1835, quando Dom Pedro II era imperador, o Império transferiu a sede do governo para Cuiabá. Os poderosos do governo juntamente com os togados disseram adeus e pegaram a estrada com o círculo do poder. Isso aconteceu logo após a Rusga, movimento que botou em campos opostos quem mamava e aqueles que queriam mamar. Depois da Rusga a cidade de Moreira Cabral nunca mais foi a mesma – briga, briga, briga pela mamação.
Vila Bela ficou sozinha com seus negros, muitos sofrendo com o maculo e cuidando de uma certa bandeira verde e amarelo nas barrancas do Guaporé junto à Serra de Ricardo Franco, onde mais tarde o poderoso Eliseu Padilha encontrou o verdadeiro Caminho das Índias.
Veio o horror da guerra com o Paraguai. O Almirantado em Assunção decidiu invadir Cuiabá. A cidade recorreu a um velho lobo do mar, o ex-mercenário Augusto Leverger, a quem entregou sua defesa, enquanto figurões do poder se embrenhavam cerrado adentro em Chapada dos Guimarães. Leverger desceu o rio Cuiabá e o desviou num trecho onde hoje é Barão de Melgaço. Ali instalou canhões que poderiam botar a pique a frota inimiga. Solano López recuou. Temia o comandante mato-grossense.
A defesa de Cuiabá rendeu a Leverger o título de Barão de Melgaço, o nome da cidade onde fez a proeza e da vizinha Santo Antônio de Leverger. Na capital o Barão empresta seu título para denominar a Academia Mato-grossense de Letras que reúne a intelectualidade literária mais produtiva do quarteirão de sua sede. Em Barão de Melgaço o herói deu o nome de Siá Mariana a uma baía – em homenagem a um de seus rabos de saia.
Finalmente aconteceu a Proclamação da República, que teve a tímida participação do cuiabano de Mimoso, Cândido Mariano da Silva Rondon, à época jovem oficial do Exército e que mais tarde seria o herói Marechal Rondon e diria a célebre frase sobre a relação da sociedade envolvente com os índios: “Morrer se preciso for; matar, nunca”.
Veio a guerra contra o Eixo. Cuiabanos lutaram bravamente no teatro de operações da Itália. Algumas vezes entrevistei ex-pracinhas da FEB e, dente eles, Feliciano Moreira da Costa, Ismael Costa Neves, Mário de Pinho e Gabriel de Souza Guimarães, cuiabanos de fibra, que lutaram em Monte Castelo e outras frentes contra os nazistas de Adolf Hitler.
Vencido nazismo, o Brasil passou a ser rondado pela União Soviética com seu regime comunista. Em 1964 os militares com apoio de civis tomaram o poder. De Cuiabá partiu a tropa do 44º Batalhão de Infantaria Motorizado – que se chamava 16º Batalhão de Caçadores – sob o comando do então coronel Meira Mattos, que ocupou o palácio presidencial.
CERRADO – O ano de 1970 foi o marco temporal para a conquista do cerrado, que começou em Rondonópolis, na fazenda São Carlos, com o produtor Adão Riograndino Salles, pai do ex-governador Rogério Salles.
Em Cuiabá, no ano 1970, nasceu a Universidade Federal de Mato Grosso, criada pelo presidente Médici e o ministro da Educação, Jarbas Passarinho – seu primeiro reitor foi o médico cuiabano e filho do lendário Bugre, Gabriel Novis Neves.
A população mundial aumentando sem parar, enquanto a capacidade de produzir alimentos não acompanhava a demanda crescente. Mato Grosso entrou em cena com seu cerrado que virou celeiro de produção de soja, algodão, milho e arroz. De quebra, passou a transformar proteína vegetal em proteína animal. Claro que não se produz em Cuiabá, mas é aqui, onde tudo se decide. É aqui que o banco libera o financiamento; que o governo dita regras ambientais, agrícolas e agrárias; e estabelece alíquotas tributárias ou desonerações para o agronegócio.
A CIDADE – Assim nasceu e se desenvolveu Cuiabá, que recentemente chorou e sofreu com a pandemia da covid-19.
Essa abençoada e ensolarada cidade completa 306 anos no dia 8, e desde seus primórdios transmite em calor humano aos que batem à sua porta, a alta temperatura que é uma de suas características tendo por testemunha o céu mais azul e bonito que reflete nas águas do rio que lhe empresta o nome.
Cuiabá é paz, o lado bom da vida e a resignação do cidadão que não é bobo nem nada e vê em silêncio prudente os absurdos na pilhagem política no erário público na terra da gostosa cabeça de pacu e da farofa de banana, do guaraná ralado, da gelada do Bar do Bugre, do rasqueado, da prece ao Santo Negro São Benedito, da mão sempre estendida da Sociedade Espírita Wantuil de Freitas, da irradiação do saber e da cultura da UFMT, da viola de cocho, do povo digoreste, do cuiabano que faz do migrante um xomano tchegado, do patriotismo do Marechal Rondon, do heroísmo do Barão de Melgaço, da ciência agronômica de Hortêncio Paro, da voz de Bruna Viola e Roberto Lucialdo, da irreverência de Liu Arruda, da literatura de Ricardo Guilherme Dicke e Marinaldo Custódio, do discurso de Gilson de Barros, da visão de estadista de Júlio Campos, dos gols de Bife e de Igor Jesus, da força física de Bruna Benites, do gingado de Dona Domingas Leonor, do som do saxofone de Bolinha, da altivez de Zulmira Canavarros, da medicina de Gabriel Novis Neves e Elza Luiz de Queiroz, da luta pelo transporte ferroviário de Maria Dimpina Lobo Duarte, da honradez política de Frederico Campos, da dimensão internacional de Roberto Campos, da coerência política de Moisés Mendes Martins Júnior, da busca pela industrialização de Archimedes Pereira Lima, da liderança sindical de Homero Alves Pereira, do tino comercial de Sango Kuramoti, do jornalismo de João Alves de Oliveira e Nelson Severino, da voz sertaneja no rádio de Carlos Roberto Mortadela e Arizona, da devoção sacerdotal do Frei Quirino, da beleza na passarela de Fernanda Frandsen, da velocidade e tenacidade da corredora Jorilda Sabino, da fotografia de Lázaro Papazian, do colunismo social de Jejé de Oyá, da luta por igualdade racial de Jacy Proença, do piano de Dunga Rodrigues, do humanismo de Maria de Arruda Müller, do espírito democrático de Dante de Oliveira, da defesa das prerrogativas do advogado de Renato Gomes Nery na OAB, do desempenho cênico no palco e na TV de Totia Meireles, da responsabilidade no exercício de função pública nomeada de Rômulo Vandoni, do senso de integração nacional do Coronel José Meirelles, da ousadia empreendedora de João Balão, dos critérios ambientais de Domingos Inglesas Valério, da poesia em concreto de José Portocarrero, da leveza política nos acordes da sanfona de Enelinda Scala, da fidelidade partidária de Carlos Bezerra, da condução do Brasil pelo presidente Marechal Eurico Gaspar Dutra, do fotojornalismo esportivo de Dinalte Miranda, da regência de Fabrício Carvalho da capacidade de mobilização cristã do Padre Firmo e do Pastor Sebastião Rodrigues, da ousadia empresarial de Samir Maluf, da bravura dos Pracinhas cuiabanos na Itália, da arte plástica de Adir Sodré, do bolinho de arroz sem igual de Dona Eulália, da poesia de Marilza Ribeiro Cardoso e da arte da gravurista Vitória Basaia.
A tricentenária cidade de tantas figuras dignas e berço do povo que orgulha o Brasil somente pode ser vista pelo ângulo da alma de sua gente citada neste texto e dos milhares de cuiabanos que a constroem dia após dia, de sol a sol sob as bênçãos do Senhor Bom Jesus de Cuiabá.
Parabéns cidade berço das minhas netinhas Ana Júlia, adolescente, e Mariana, que está chegando.
Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Vamos supor que você está bem com isso, mas você pode optar por sair, se desejar.
AceitarLeia Mais
Belo texto! Parabéns a vc e a Cuiabá
Texto irretocável!
Parabéns, Eduardo.