Boa Midia

Onde canta o sabiá

Ele, Mané Garrincha

Ódio entre irmãos quase sempre é amor mal resolvido. Acho que esse conceito se aplica ao relacionamento que vai do tenso ao afetivo entre nós brasileiros e os hermanos argentinos. No sobe e desce da temperatura emocional nos dois lados da fronteira, o pico mais agressivo fica por conta do futebol, seja ela bretão, de quadra, de areia ou até de botão. O nacionalismo de ambos aflora, explode no peito, tem sangue nos dentes desses povos sul-americanos que endeusam Maradona, Pelé e Messi.

 

Lá vai o Maradona

Em campo, no futebol daquele que conhecemos bem, com 11 de cada lado e uma bola chutada pra lá e pra cá, o saldo é favorável aos pentacampeões. Na individualidade, na malandragem, na garra e até mesmo no culto aos ídolos, Buenos Aires nos rodopia num imaginário tango do misterioso Carlos Gardel – sobre chuteiras.

Claro que temos Garrincha, o seo Mané Garrincha, com os dribles mais previsíveis e que mesmo assim nenhum zagueiro conseguia pará-lo, a não ser baixando o sarrafo. Só que nosso driblador chamado de Alegria do Povo, nunca esteve na galeria dos grandes heróis do futebol brasileiro, mesmo sendo titular absoluto da seleção mundial do século XX, eleita pela Fifa. Isso sem acrescentar que em 1962 o Brasil de Mané Garrincha e mais 10, sem Pelé, foi bicampeão mundial no Chile. Por isso, perdemos para os portenhos por 2 a 1. Vamos de Pelé e os vizinhos nos massacram com Maradona e Messi.

Ninguém parava Mané Garrincha

A genialidade do craque não morre; ele, sim. Mas, os vídeos eternizam seus feitos. Maradona descansa em paz. Desceu à sepultura nos braços de sua nação, sob as lágrimas e os gritos de seu povo. Restaram Pelé e Messi. Mané Garrincha, coitado, parou de respirar para sempre diante de um país de olhos fechados e nunca chegou ao Panteão da Glória, mas nem por isso deixou de ser ídolo e monstro sagrado para uma parcela da população que o vê acima dos demais jogadores. Pobre Mané Garrincha, que sequer teve seus restos mortais respeitados, uma vez que em 2017 os mesmos foram furtados de seu túmulo – que absurdo! – no cemitério de Raiz da Serra, município de Magé, na região metropolitana do Rio de Janeiro.

Os odiados e amados ou amados e odiados argentinos nos deram uma lição. No adeus a Maradona a nação reverenciou o craque e seu papel histórico pelo futebol na terra de San Martín, Evita, Perón e dele. Ninguém tocou na vida pessoal do craque que partia. No Brasil, ainda hoje, transcorridos mais de 37 anos do adeus de Mané Garrincha não faltam vozes desabonadoras na televisão e nos comentários esportivos sobre o Anjo das Pernas Tortas, como bem o definiu Nelson Rodrigues. Temos que nos mirar nos hermanos.

O Brasil tenta encontrar em seus ídolos o perfil do moralismo utópico que por ser utopia não se faz presente na população. Mané Garrincha não se enquadrava para absolvição no julgamento do tribunal da hipocrisia. Maradona foi respeitado pelos seus concidadãos. Estava acima dos conceitos.

Homem simples, gente

Pelé, Maradona e Messi são símbolos do futebol, craques por excelência. Mané Garrincha não perdia para eles. Porém, o ponteiro-direito brasileiro jogou num período de pouca cobertura jornalística, sem internet e redes sociais. Salvo algumas imagens e o filme Garrincha Alegria do Povo, não existe mais nada sobre ele. Suas diabruras se volatilizam na memória coletiva na medida em que as gerações se sucedem. Alguém tinha que tirá-lo da oralidade histórica e leva-lo para os registros escritos (e filmados) que se imortalizam.

Descanse em paz, Maradona, com La mano de Dios! Seu povo não o esquecerá jamais e nenhuma voz se levantará pra cobrar sua conduta no plano pessoal. Aqui, não. A vida de Mané Garrincha fora das quatro linhas, onde reinava, era de domínio público. Em 1962, quando o mago da bola levou sua escova de dentes indo morar com a cantora Elza Soares, Paulo Vanzolini compôs o samba-canção Volta por cima, gravado por Noite Ilustrada, que em seu bordão diz: “Reaja mostre que é um campeão / Volte para casa abrace as crianças e peça perdão”. A música era um apelo ao fim do relacionamento do ponteiro-direito com a diva da música, e escancaradamente pedindo melodicamente que ele reatasse com sua ex-mulher e que retornasse aos filhos daquele casamento.

Somos povo pautado pelos conceitos que nos são transmitidos pela magia da TV e a fala de comentaristas. Perdemos Mané Garrincha e não somos capazes de reverencia-lo. Em tudo há exceção. O ponteiro-direito empresta seu nome ao Estádio Nacional de Brasília, a exemplo do que fazem outros jogadores: Estádio Nilson Santos, Estádio Rei Pelé etc. Essa homenagem a Mané Garrincha é merecida, mas é preciso leva-lo além do concreto daquela praça esportiva e torná-lo presença constante nas conversas e nas citações aos grandes brasileiros nesta Pátria de Chuteiras. Um Mané Garrincha do brasileiro, pelo brasileiro e para o brasileiro.

Aprendamos a lição argentina que nos é transmitida agora. A bola rola muito além de Pelé. A verdadeira liderança nacional está num patamar superior ao de Lula e Bolsonaro.

Maradona vive! Mané Garrincha, também, nessa terra de JK, do Marechal Rondon, Irmã Dulce, Chico Xavier, Plácido de Castro, Santos Dumont, Bento Gonçalves, coronel Ricardo Franco, tenente-coronel Antônio Maria Coelho, Carlos Drummond de Andrade, Chiquinha Gonzaga, Mazzaropi, Catulo da Paixão Cearense, Teixeirinha, Dr. Zerbini, Oswaldo Cruz, Ruy Barbosa, Ana Neri – também de Pelé e onde canta o sabiá.

Eduardo Gomes – Jornalista em Cuiabá

FOTOS:

1 – Exame em Arquivo

2 – AFA – Site oficial

3 – O Gol em Arquivo

4 – Lance em Arquivo

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