O (bom) exemplo do picolezeiro seo Amâncio

Uma dor forte, quase insuportável, tomou conta do peito.
Sozinho no quarto ele travou os lábios, conseguiu sair da cama, abriu a porta e chegou ao banheiro. O dia ensaiava os primeiros raios. Mesmo debilitado tentou manter a rotina. Após escovar os dentes caminhou até um depósito para comprar um caminhão de areia, mas o estabelecimento estava fechado. Quase não conseguia manter o corpo ereto, parecia que seria sufocado. Foi ao posto de saúde. A agente avaliou que aquilo seria um infarto e imediatamente chamou a ambulância. Dois meses depois foi submetido a uma angioplastia. Três dias após a intervenção cardiológica estava nas ruas, sorridente, vendendo picolés.
Quem sofreu o infarto foi Amâncio Marques, que ganha a vida empurrando um carrinho de picolés pelas ruas de Cuiabá em trajetos diários nunca inferiores a 15 quilômetros. Mas, afinal, quem é esse seo Amâncio?
Seo Amâncio é paulista de Adamantina e há 14 anos mora em Mato Grosso. Gráfico, trabalhava nessa profissão em São Paulo, mas a modernização do setor reduziu os quadros das empresas. Perdeu o emprego para os avanços tecnológicos. Sua situação não era nada confortável e ele resolveu conhecer a capital do Estado do município de Cáceres – cidade que povoava sua mente.
Em 9 de maio de 2003, por volta de 10 horas, desembarcou em Cuiabá, sem dinheiro e sem qualificação profissional. Na rodoviária olhou para o céu azul sem nuvens. Havia alguém por perto e ele lhe perguntou: “Será que esse clima sempre predomina aqui?”. A resposta lhe mostrou o caminho para procurar uma nova profissão: “Sim. Moro aqui há muito tempo e todos os dias são quentes”. Transcorridas três horas estava na Avenida da Prainha empurrando um carrinho de picolés. Imaginou que o gráfico ficara no passado e que ali nascia o picolezeiro Amâncio.
Seo Amâncio estava enganado. O gráfico continua vivo em suas entranhas. Em 2006 recebeu um convite e foi trabalhar numa oficina gráfica em Sinop, mas não se readaptou a velha profissão. Pegou um ônibus e fez o inverso caminho da BR-163 que o levou àquela cidade. Voltou ao picolé.
Uma das rotas de venda de picolés de seo Amâncio é a Avenida Historiador Rubens de Mendonça. Há alguns dias precisava ilustrar uma matéria com um picolezeiro. Ele concordou em se deixar fotografar. Em nossa conversa me disse que gosta de ler livro, “li mais de mil títulos”. Achei estranho. Afinal, estamos em Cuiabá, cidade onde o hábito da leitura é tão atípico quanto roda de samba em Pequim. Dei-lhe um exemplar de um de meus livros. Dias depois, nos encontramos na calçada da mesma via e ele contou com riqueza de detalhes sobre o que leu. Ganhou exemplar de outra publicação minha. Ontem, no mesmo local seo Amâncio não continha o riso ao narrar trechos de causos daquela obra.
Antes dos encontros que começaram com o pedido para fotografá-lo, nada sabia sobre sua vida. Aos poucos nos tornamos conhecidos. Ontem, ouvi sua narrativa sobre o infarto e também que mesmo exercendo profissão informal e humilde conseguiu comprar dois lotes anexos no distrito de Nossa Senhora da Guia e construir uma casa de alvenaria com 120 metros quadrados onde vive Doralice Elpídia dos Santos; dona Doralice estava em Rosário Oeste quando do infarto.
“A casa foi arrancada nos braços”, diz com numa humilde frase do mais puro orgulho no melhor sentido da palavra. Vender picolé é uma aposta na sobrevivência. A sorveteria não paga salário e o picolezeiro recebe 50% do faturamento, mas em caso de assalto o vendedor arca com o prejuízo. “Fui assaltado 15 vezes”, revela.
Minha admiração por ele nasceu ao vê-lo velho, mas sorridente empurrando o carrinho com sua estridente buzina. Esse sentimento aumentou quando soube de sua angioplastia, porque sei o que é isso, uma vez que carrego quatro stends no peito como consequência de um infarto.
A casa arrancada nos braços fica distante do seu local de trabalho e seo Amâncio todos os dias embarca num ônibus nos dois sentidos da viagem entre a Guia e Cuiabá. Durante duas horas o picolezeiro dá pasto à vista vendo a paisagem do percurso. Cedo, quando pega o carrinho, o sol já está quente. Por volta de 13 horas o asfalto do chão é verdadeira brasa. No final da tarde, quando vai à sorveteria para o acerto do dia, a temperatura ainda é alta. Protetor sol, nunca usou. A alimentação para o vigor necessário à pesada jornada não inclui o almoço, “fico no lanche, mesmo”, revela. À noite dona Doralice capricha num pratão e ele bota o estômago em ordem.
Filho, seo Amâncio não tem, mas dona Doralice tem uma, casada, que mora em Cuiabá com seus três filhos, que para ele são netos. Regime alimentar, nem pensar, “como de tudo”, não esconde. Medicação, sim. Todos os dias toma cinco comprimidos para o velho e bom coração que bate forte apesar do infarto.
Belo exemplo de dignidade humana dá todos os dias seo Amâncio. Seu caráter vem de berço, mas foi burilado pela doutrina kardecista. Vê-lo com seu carrinho de picolés tocando a buzina pra chamar a criançada é uma página de cidadania nesta Cuiabá impregnada de figuras públicas corruptas que teimam em quebrar nosso silêncio com o barulho das viaturas que nos últimos dias estão em seus encalços.
EDUARDO GOMES
Da REDAÇÃO
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