Boa Midia

De perdão do Senhor

Uma mãozinha no acostamento da rodovia, em meio dos destroços. Parei, olhei fixamente pra ela imaginando que se tratasse de um pedaço de boneca. Não era! Chamei um dos bombeiros que atendiam a ocorrência – um sargento. Mesmo acostumado às tragédias, ele se assustou. A pegou com cuidado. Abalado, caminhou até uma viatura de sua corporação, onde a deixou. Voltou, passou por mim,  e falou quase sem voz: em que mundo estamos, meu Deus!

O episódio acima aconteceu em 1993 numa curva da BR-364 próximo a Jaciara, onde uma carreta transportando farelo de soja, que seguia rumo Sul, bateu na lateral de um ônibus que trafegava em direção oposta. Morreram 15 passageiros e o carreteiro – dos mortos, 15 ocupavam poltronas no lado esquerdo do ônibus; o motorista conseguiu desviar para a direita e se salvou. Na cidade, no meio da rua, uma pilha de caixões aguardava os corpos.

Muito triste!

Neste sábado, 4, virtualmente estou num velório com 63.893 caixões, dos quais, 432 de brasileiros sendo um mato-grossense.  Trata-se de uma cerimônia fúnebre que não se completou ainda. A todo momento o número de corpos aumenta. Nas últimas 24 horas, o Brasil viu 72 fecharem os olhos e, um deles, na nossa jovem, bela e sedutora Lucas do Rio Verde.

A dor machuca os corações de parentes e amigos das vítimas, que sequer podem acompanhar seu adeus. No entanto, brasileiros de todas as tendências ideológicas, de vários partidos, de muitos lugares, de todas as classes sociais, de diversos credos, enfim, da essência da matiz social da nação, contrariando a índole humanística e solidária que é o verdadeiro traço de identidade desta terra de Santa Dulce dos Pobres, Chico Xavier, JK, Marechal Rondon, Plácido de Castro, Bernardo Sayão, Garrincha,  Norberto Schwantes, Luiz Gonzaga, Ayrton Senna, Ênio Pipino, Chiquinha Gonzaga, Éder Jofre, Adhemar Ferreira da Silva, Nelson Gonçalves, Maysa, Adoniran Barbosa, Maria Esther Bueno, João Pacifico, Francisco Sabino Álvares da Rocha Vieira Barroso, Luiz Vieira, Oswaldo Cruz, Ruy Barbosa, Fafá de Belém, Santos Dumont, Tarsila do Amaral, Carlos Drummond de Andrade, Teixeirinha, Getúlio Vargas, Carlos Chagas, Castelo Branco, Euryclides Zerbini, Roberto Campos, João Augusto Conrado do Amaral Gurgel, Delmiro Gouveia, Chacrinha, Fernanda Torres, Bibi Ferreira, Moacyr Franco, Mascarenhas de Morais, Bento Gonçalves, Cacique Raoni, Didi, Tostão, Inezita Barroso, Irmã Maria Adelis, Chico Anysio, Couto Magalhães, Adib Jatene, coronel José Meirelles,  Irmã Vita, Irmã Luiza, João Carlos Gandra da Silva Martins  e de milhões de outros nas mais diversas áreas, no ontem e agora.

Não sei onde encontram tamanho ardor ideológico e moralista em Mato Grosso para renegarem o novo coronavirus enquanto pandemia.

Não sei onde encontram em Mato Grosso parâmetros comparativos entre a morbidez e as sequelas do vírus, de um lado, e de outro o presidente Jair Bolsonaro e seus antecessores Lula da Silva e Dilma Rousseff.

Não sei onde encontram em Mato Grosso tanto humor mórbido diante desse velório que ao término dessa leitura será ainda maior.

Imagino que o coração dos que perderam vidas queridas para o novo coronavírus devem se sentir duplamente órfãos: com o adeus dos que partiram e a insensibilidade humana de parcela considerável de seu próprio povo.

Imagino…

Se nem mesmo a dor de milhares de mortes continentes afora é suficientemente forte para sensibilizar os debatedores da ironia, quanto mais um pedido meu. Por isso, nada peço a eles. Mas, suplico a Deus para que cesse essa pandemia, poupe as vidas dos infectados, dê o conforto espiritual aos que choram, e que no amanhã derrame uma luz especial sobre essa gente, pra que reflita sobre essa postura, que em nada contribui para a evolução do espírito.

Que nosso abençoado e ensolarado Mato Grosso supere esse momento, com seu povo mantendo a serenidade e seriedade. Que nunca mais eu veja mãozinha de criança, arrancada do corpo, e que não leia mais esses textos, que por sua essência, antes de mais nada, precisam receber o perdão do Senhor.

Eduardo Gomes de Andrade é jornalista

eduardogomes.ega@gmail.com

1 comentário
  1. Denise rodeguer Diz

    Que texto sensacional. Quanta sensibilidade!! Que mensagem forte! Digno de ser lido e RELIDO. Parabéns!

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