“Acendo um cigarro”
Claro que não, não acendo um cigarro há muito tempo, nem pretendo voltar a acendê-lo pela vida afora, nunca mais. Fui fumante dos 17 aos 29 anos, embalado por um ingênuo sonho de juventude de que isso poderia me ajudar a vencer a timidez, socializando-me com os demais jovens, e que me capacitasse a ter mais sucesso com todos eles, mais especialmente ainda com as garotas.
Mas como não virou nem pode virar, obviamente, pulei fora desse barco, escapei dessa roubada para sempre. E é claro que não foi de modo totalmente indolor: tive muita vontade de voltar a fumar especialmente até a terceira semana, e depois, muito depois, de vez em quando ainda sonhava que recaía no vício. Única vantagem desses sonhos amargos é que, mesmo dormindo, meu superego entrava em ação me recriminando com vigor: “Mas você é burro! Tanto esforço pra deixar este vício que te fez tanto mal e agora você ainda quer voltar a ele? Por quê?”.
Mas, enfim, se hoje volto a falar no assunto, o faço instigado pelo poeta Régis Bonvicino que assim homenageou o jornalista Otavio Frias Filho, após a perda do amigo: “Diante de sua morte, que me desconcerta, com Fernando Pessoa, digo: ‘Acendo um cigarro para adiar a viagem / Para adiar todas as viagens / Para adiar o universo inteiro’”.
Em tempos em que o cigarro não recebia dos governos e da população a vigilância que recebe nos dias de hoje, ele tinha lá o seu charme na publicidade, nas mãos de atores e atrizes do cinema mundial, por exemplo. E assim também no teatro, na literatura, como bem ilustra a citação que Régis Bonvicino fez de Fernando Pessoa.
E o que falar, nesse sentido, da música popular brasileira, com músicas como “Fumando espero” e “De cigarro em cigarro”?
Nesses dois últimos casos, a exemplo do texto que me deu a ideia para este artigo (o de Pessoa), o sentido é o de estratagema para fazer o tempo passar mais rápido quando temos o coração ansioso, pelo amor ou amigo que custa a chegar, ou para tentar adiar o quanto possível o encontro com o inevitável, como no caso presente da perda de um ente querido.
Tantas são as vezes na vida, afinal, em que simbolicamente ainda seria oportuno utilizar aquele pessoano “acendo um cigarro”, sinalizando aos outros que nosso cérebro e coração precisam dar um stop nessa hora e que tudo o que desejamos é nos ausentar de nós mesmos e do mundo.
Nem que seja pelo tempo de uma simples baforada.
MARINALDO CUSTÓDIO, escritor, é mestre em Literatura Brasileira pela UFFmcmarinaldo@hotmail.com
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