273 anos da Vila mais Bela do mundo
Eduardo Gomes
@andradeeduardogomes
eduardogomes.ega@gmail.com

O mapa do Brasil na fronteira Oeste seria diferente do atual, se Vila Bela da Santíssima Trindade não tivesse garantido a soberania brasileira numa região remota no centro do continente, pois nem Deus sabia onde era domínio português e espanhol. A cidade de Vila Bela, que nesta quarta-feira, 19 de março, completa 273 anos de fundação, merece todas as reverências mato-grossenses por ser guardiã da nacionalidade e também pelo conjunto histórico de sua brava gente negra, que um dia foi abandonada à própria sorte, num período em que as ruas tinham mortos amontoados, vitimados pelo maculo. Capital de Mato Grosso, de uma hora para outra nossa sentinela viu os homens poderosos do governo, da legislatura e da magistratura sumirem na curva da estrada em meio ao poeirão dos carroções e dos cascos da tropa, enquanto a base populacional era deixada para trás, à margem do lendário Guaporé e ao pé da Serra Ricardo Franco. Brava Vila Bela!
Brasileiríssima. Injustiçada pela escravatura e a fuga dos brancos poderosos. Bela, sensual e envolvente. Negra. Devota. Fraterna. De coração aberto ao perdão. Autora de uma página histórica quase tricentenária testemunhada pelas águas do rio Guaporé que passa ficando aos seus pés e da Serra Ricardo Franco que a contempla do alto, de onde também Deus e os orixás que acompanharam seus filhos caçulas desde que deixaram a África nos navios negreiros a enxergam com olhos de paternidade. Brava Vila Bela!
Salve a linda comunidade guardiã da fronteira Oeste brasileira, ô Deus! Salve-a São Benedito! Salve-a o Divino Espírito Santo! Salvem-na as Três Pessoas da Santíssima Trindade! Salve-a Ogum! Salve-a Xangô! Salve-a Iansã! Salve-a Nanã! Salvem-na os demais orixás! Salve-a o espírito da Rainha Teresa de Benguela! Todos nós saudamos a cidade de Vila Bela que foi a primeira capital de Mato Grosso. Brava Vila Bela!
Mãos escravas a construíram sob a vigilância dos feitores, que transformavam em prédios, ruas, praças e igreja, a planta urbanística que seu fundador, Dom Antônio Rolim de Moura, o Conde de Azambuja, trouxe de Lisboa, na terrinha. A cidade nascia sob ares de modernidade numa região erma, onde a malária era implacável. Brava Vila Bela!
Vila Bela engatinhou pronunciando em português enquanto os vizinhos bolivianos hablavam o mais puro espanhol bem ao seu lado. Falava nas ruas. Na igreja católica as orações que se ouviam eram rezadas fervorosamente em latim pelos padres brancos de costas para os fiéis da mesma cor; amém! Nas senzalas, quase imperceptíveis para não serem escutados pelos feitores e os capitães do mato, os escravos negros elevavam as mãos calejadas aos céus em cultos afros, balbuciando sua fé em dialetos africanos das aldeias de onde foram capturados; saravá! Brava Vila Bela!
Uma decisão política levou a capital para Vila Bela. Outra a retirou de lá. Em 28 de agosto de 1835 o imperador transferiu a sede do governo para Cuiabá. Os poderosos do governo, os togados e os legisladores disseram adeus e pegaram a estrada juntamente com o círculo do poder. Brava Vila Bela!
O poder sempre foi fascinante. Antes os bajuladores e aproveitadores do Estado também usavam ternos. Nenhum tinha boton na lapela, mas ninguém dispensava um quê identificador. Não havia depósito salarial em conta-corrente no final do mês, mas a mamação era a mesma de hoje. Vantagem por fora sempre foi prática; por dentro, também. Mordomia nunca faltou, nem falta. A despesa sempre correu por conta do erário. A burocracia do poder não trabalhou no ontem nem no agora, porque sempre teve costas quentes dos políticos, partidos e instituições que chancelam suas nomeações entra governo sai governo. Os crônicos nomeados nunca souberam o que é consciência e não conseguem se ver no espelho. Brava Vila Bela!
A mudança da capital foi uma questão logística. Cuiabá, à margem do rio que lhe empresta o nome, tinha melhor acesso à Corte do que Vila Bela, distante 200 km de Porto Esperidião, banhado pelo rio Jauru, navegável para pequenas embarcações e afluente da margem direita do rio Paraguai. O trajeto era difícil e a região hiperendêmica em malária, a doença que levou à morte o engenheiro civil e deputado federal Manoel Esperidião da Costa Marques, o homem que sonhou com a construção de uma ferrovia ligando Cuiabá ao Brasil litorâneo. Brava Vila Bela!
Hoje, em termos logísticos, Vila Bela supera Cuiabá quando se busca a saída pelo Pacífico, que encurta distância para as commodities mato-grossenses alcançarem o mercado asiático, sobretudo a China, que é o maior importador. Brava Vila Bela!
Os brancos se foram. Levaram consigo o medo generalizado do maculo, a hiperendemia que assolava Vila Bela. Era uma doença bacteriana com disenteria causada pelo carrapato, resultante da falta de higiene e que atingia principalmente os escravos. Também chamada de mal del culo (mal do cu, em português) essa doença consistia na presença de muco malcheiroso e de ulcerações com relaxamento do esfíncter anal externo. Causou muitas mortes em Vila Bela e seus arredores. Brava Vila Bela!
No isolamento, abandono e na absoluta ausência do Estado também se vive. Vila Bela viveu, sem dobrar a espinha. Brava Vila Bela!
Heroínas sedutoras
Em Vila Bela, nas fazendas e sítios naquele município, mães, tias, irmãs, cunhadas, primas e amigas dos escravos que seriam levados ao suplício descobriram um meio de amenizarem e até mesmo de evitarem a tortura dos seus. Inventaram a Dança do Chorado, que como o nome diz é um bailado permeado de lágrimas. Ao som dos profanos tambores e instrumentos de cordas, dançavam alucinadamente belas e sedutoras para os lacaios da casa-grande e até para os seus ocupantes.
A mulher do Chorado botava vestido de chita colorida com providenciais aberturas e decote para mostrar aos olhos gulosos dos gajos suas coxas grossas, seus seios arrebitados e sua bunda torneada.
Uma rosa vermelha ou amarela no cabelo pixaim.
Um colar de miçangas feito com cascas e frutos secos do mato.
Um perfume extraído de flores. A anca perfeita e tentadora.
Os dentes de brancura inigualável.
A boca carnuda.
Requebrava e em gemidos lascivos despertava desejos.
Atiçava ainda mais a tara dos homens que tinham poder para punir ou absolver os escravos a um passo da tortura ou sendo submetidos a ela: gingava com uma garrafa de Canjinjin sobre o cabelo crespo reluzente e dava doses aos extasiados espectadores.
O forte teor alcoólico das talagadas com gosto agridoce, corpos bonitos a lhes esfregar… era um ai Jesus!
O que acontecia com uma e outra mulher enquanto as demais dançavam ninguém nunca registrou. Também não há detalhamento do que elas faziam quando cessava a dança e o som dos instrumentos musicais tocados por negros que as acompanhavam. De igual modo nunca se escreveu sobre o comportamento de brancas portuguesas e nascidas em Mato Grosso com os jovens negros. Enquanto seus homens se esbaldavam com as negras, um fuzuê silencioso acontecia entre quatro paredes nas casas-grandes ou em seus quintais. Não havia IBGE para recensear a quantidade de bebês mulatinhos que nasciam de mães brancas e negras. Literalmente era o toma lá dá cá; ora, pois, pois! Davam e se davam bem matrimonialmente as patroas. Puritanas senhoras brancas devotadas à Santa Madre e fiéis quando de pernas fechadas.
O que era dança de dor virou cultura e tradição. O Chorado encanta a todos e mais graça ainda ganha ao som do Conjunto Aurora do Quariterê, formado por mulheres negras com suas vozes roucas e seu ritmo afro-vila-belense saudando o Campo Verde, como a cidade é chamada pelos filhos negros:
O campo verde é serenado
O campo verde é Vila Bela
Campo verde é serenado
Campo verde é Vila Bela
Eu vou-me embora pra cidade
Da Santíssima Trindade
Vou-me embora pra cidade
Da Santíssima Trindade
Seu eu soubesse que tu vinha
Fazia o dia maior
Dava o nó na fita verde
Outro no raio do sol
A folha da bananeira
De tão verde amarelou
O beijo da tua boca
De tão doce açucarou”
Das amarguras do passado, Vila Bela trouxe um rico conteúdo de cultura representado pelo Chorado, a Dança do Congo e outras manifestações, que a fazem o maior e melhor roteiro cultural de Mato Grosso, mas, ainda, pouco explorado. Brava Vila Bela!
À riqueza cultural deve se acrescentar o fato de que o quilombo do Piolho ou Quariterê, numa área à época pertencente àquele município, teve à sua frente a Rainha Teresa de Benguela. Brava Vila Bela!

Antes da criação do Território Federal do Guaporé, que mais tarde transformou-se em Rondônia, parte de Guajará-Mirim era vila-belense, e coube a Vila Bela expedir o alvará para a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré no começo do século passado, pelo empresário Percival Farquhar. Os trilhos ligavam Guajará-Mirim a Porto Velho (que nasceu da ferrovia), como parte de um acordo Brasil-Bolívia. Brava Vila Bela!
A demarcação da fronteira Bolívia-Brasil foi feita pelo coronel inglês Percy Harrison Fawcett, pouco antes do seu desaparecimento no Serra do Roncador, no Vale do Araguaia, em 1925. Brava Vila Bela!
Reverência ao povo vila-belense

A Festança de Vila Bela da Santíssima Trindade é oficialmente reconhecida como de relevante interesse cultural e como Patrimônio Imaterial do Estado de Mato Grosso, graças à Lei 12.657 de 19 de setembro deste ano, de autoria do deputado estadual Júlio Campos (União), aprovada pela Assembleia Legislativa e sancionada pelo governador Mauro Mendes (União). Brava Vila Bela!
O reconhecimento oficial da Festança não é o único ato de Júlio Campos em respeito à tradição, a história e a cultura daquele município. Brava Vila Bela!
Júlio Campos foi governador no período de 1983 a 1986 e definiu que no dia 19 de março a capital mato-grossense seria instalada em Vila Bela. Esta norma sempre foi respeitada desde então. Brava Vila Bela!
A cidade de sempre

O isolamento acabou. A população é de 17.384 habitantes. Vila Bela é interligada à malha rodoviária nacional pavimentada e busca uma saída para o porto de Arica, no Chile, cruzando a Bolívia. A energia elétrica, telefonia e a internet chegaram. O município tem 13.484 km², mais que o dobro do Distrito Federal. Seu rebanho bovino ultrapassa 1 milhão de cabeças. Brava Vila Bela!
O município preserva parte da concepção arquitetônica de seus primórdios, como as ruínas da igreja católica e tem roteiros turísticos de rara beleza. Brava Vila Bela!

Vila Bela mudou muito, mas a relação é a das pequenas comunidades, onde muitos são chamados por apelidos e todos se conhecem. A proximidade com a vizinha Bolívia e a união dos povos dos dois lados da fronteira cria um clima de harmonia com a formação de casais brasilianos – brasileiras com bolivianos, e bolivieiras – bolivianos com brasileiras. O vice-prefeito é Elias da Conceição Silva, o Elias da Ricardo Franco (PSB) – em alusão à região onde reside. Brava Vila Bela. Parabéns pelos 273 anos da mais pura brasilidade!
Fotos:
1 e 2 – Eduardo Gomes
3, 6 e 7 – José Medeiros –
4 – Governo de Rondônia
5 – Edson Rodrigues/ALMT
Brava Vila Bela!