Boa Midia

Zé Traçaia

Arquibancada do Colégio Estadual lotada pela torcida ávida para ver o primeiro treino da seleção de Mato Grosso de 1954 sob o comando de um técnico profissional – Jarbas Batista, que tinha sido jogador do Clube de Regatas Flamengo – e depois virou treinador. Era um acontecimento marcante para o futebol de Mato Grosso.

De repente, aparece Jarbas olhando para a torcida e perguntando se alguém poderia colaborar com a seleção, completando um dos times, porque um dos jogadores convocados não tinha chegado ao campo ainda…

– Zé Traçaia, Zé Traçaia, Zé Traçaia – foi o grito uníssono da torcida presente ao estádio.

Zé Traçaia desce da arquibancada e daí a pouco, para delírio da grande torcida, surge no campo trajando um calção, uma camisa e um par de chuteiras de tamanhos descomunais para o seu físico de menino de 16 anos.

Decididamente, aquele foi o pior dia da vida de jogador de bola do lateral esquerdo Airton Vaca Braba. Temido por ser um jogador extremamente violento, Aírton apelou para cotovelada, pontapé, carrinho, tesoura voadora, etc., para conseguir parar Zé Traçaia, mas não tinha jeito. O habilidoso atacante estava numa tarde inspiradíssima e fazia o diabo em campo…

A certa altura do treino, Jarbas aproximou-se do lateral esquerdo e lhe fez um pedido: “Pare de bater desse jeito no menino, seu Aírton, porque o senhor pode acabar com a carreira do garoto…”

Resultado do seu show de bola: no dia seguinte, bem cedinho, a Comissão Técnica da seleção – Jarbas Batista, Ranulpho Paes de Barros, o médico Aquino – estava na casa da família Traçaia, pedindo autorização para Zé Traçaia ser convocado. Ser convocado já na condição de titular absoluto do selecionado…

Foi num campinho do Larguinho, que ficava entre a atual Rua Antonio João (antiga Rua dos Porcos) e a Avenida Prainha, quase no cruzamento com a Isaac Póvoas, que Zé Traçaia, o primeiro jogador de Mato Grosso a ir para o exterior, deu os primeiros passos no futebol.

O pai de Zé Traçaia, Chico Traçaia, tinha uma pensão que levava o nome da família nas imediações do Larguinho, onde a meninada entre 8 e 12 anos que morava ali por perto se reunia todos os dias para bater uma bolinha. O campinho nem traves tinha, mas bastavam 4 pedras formando dois gols para a garotada partir para monumentais rachas…

Hoje com quase 80 anos, Névio Lotufo, que era o último a ser escolhido, mas tinha lugar garantido num dos dois times, lembra que Zé Traçaia era mesmo muito bom de bola. Ao contrário de Névio Lotufo, Zé Traçaia era o primeiro a ser escolhido, no par ou ímpar, na hora da formação das equipes de peladeiros.

Havia um forte motivo para Névio Lotufo nunca ficar de fora dos rachas, mesmo que fosse para catar no gol: como sua família tinha boa condição financeira, ele se dava ao luxo de ter uma bola de capotão, um privilégio na época e que era um sonho de todos os meninos. E se não fosse escolhido, Névio metia a bola debaixo do braço e ia embora…

Admite Névio Lotufo que não se deu bem com o futebol, embora tenha jogado em alguns clubes daqui entre eles o Americano e o Flamenguinho. Mas quando foi para Lins-SP, estudar no Instituto Americano, Lotufo acabou fazendo sucesso como jogador de basquete e de voleibol e também como ciclista.

As boas atuações de Zé Traçaia na seleção de 1954 despertaram a atenção dos clubes de Mato Grosso. Ele acabou ingressando no Atlético Mato-grossense, porém pouco tempo depois seu passe foi vendido para o Botafogo, do Rio de Janeiro. Antes de ingressar no Botafogo, que à época tinha craques como Nilton Santos, Didi, Garrincha, Zagalo, campeões mundiais de 1958 na Suécia, Zé Traçaia tentou ingressar no Flamengo, no entanto nem chegou a treinar no rubronegro.

Apesar da carreira promissora, Zé Traçaia ficou pouco tempo no clube carioca, que vendeu seu passe para o Sport Club Recife. Amigos de Zé Traçaia dizem até hoje que a saída de Zé Traçaia do Botafogo teria sido uma imposição de alguns monstros sagrados do clube da Estrela Solitária. Motivo: nos coletivos do alvinegro, Zé Traçaia transformava a vida do seu marcador, o grande ídolo Nilton Santos, em um verdadeiro inferno…

Amigo da família de Zé Traçaia, Romeu Roberto Memeu, que depois virou jornalista e comentarista esportivo, e em cuja casa, em uma pequena chácara, existia um campinho de futebol batizado com o nome de Botafogo, destaca que o atacante foi também o primeiro jogador de Mato Grosso a vestir o uniforme da Seleção Brasileira. de Futebol.

Acontece que antes de se tornar a grande potência financeira da atualidade, quando a CBD recebia um convite para se apresentar no exterior, a entidade escolhia um clube que estivesse atravessando grande fase para representá-la. Usando o uniforme oficial da entidade, claro…

Foi numa dessas ocasiões, que o Sport Club Recife, o time de Zé Traçaia, foi indicado pela CBD para representar o Brasil em um amistoso contra a seleção da Áustria, em Viena. E Zé Traçaia teve uma atuação tão brilhante que pouco tempo depois foi contratado pelo Rapid, de Viena, um dos principais clubes austríacos.

Recorda também Memeu, ex-atleta do Mixto e um dos grandes colaboradores deste livro, que Zé Traçaia não foi o único a dar show de bola no campinho do Botafogo. Por lá passaram também e exibiram sua arte com a bola craques como Gerê, César Boi, Baicerê, Poxoréu, Ico e Édson Cabeça de Boi, que jogou no Flamengo e no Canto do Rio, ambos do Rio de Janeiro.

Memeu não chegou a jogar com Zé Traçaia, mas lembra que além de craque de bola, ele era também bamba no violão. E sempre que podia convidava o mestre do violão, João Jesus, o João Feijão, compadre de Memeu, para participar de suas tocadas na Rua 7 de Setembro.

Antigos amigos do jogador garantem que Zé Traçaia estava com a corda toda na Áustria, fazendo muito sucesso no futebol e com as mulheres, por causa de sua cor. Um dia, o clube que Zé Traçaia defendia foi jogar na Alemanha. A certa altura da partida, Zé Traçaia foi derrubado e bateu um dos joelhos na cabeça de um jogador alemão. Uma jogada absolutamente normal.

No entanto, um torcedor alemão que estava próximo do local do campo onde ocorreu a jogada não pensou duas vezes: meteu o cabo do seu guarda-chuva na cabeça de Zé Traçaia, que ao se levantar, meio desequilibrado, acertou um murro na cabeça do agressor…

Estava armada uma grande confusão, com os torcedores tentando pegar Zé Traçaia, que foi imediatamente levado para o vestiário, de onde saiu disfarçado para um porto fluvial e colocado como passageiro clandestino em um cargueiro para retornar à Áustria.

Depois do rolo na Alemanha, Zé Traçaia ficou pouco tempo na Áustria. Aborrecido e com saudades dos familiares e amigos, Zé Traçaia vivia de-primido, condição que acabou comprometendo seriamente sua carreira que até então tinha sido brilhante.

De volta ao Brasil, Zé Traçaia foi parar de novo no Sport Club Recife. Mas a vida na boemia não apenas acabou com a carreira de Zé Traçaia, como foi a causa de sua morte prematura.

PS – Reproduzido do livro Casos de os tempos Folclore do futebol de Mato Grosso, do jornalista e professor de Educação Física Nelson Severino

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