Boa Midia

Um bicheiro por uma estátua

Aos sábados, domingos e feriados nacionais CURTAS será substituída por capítulos do livro  “Dois dedos de prosa em silêncio – pra rir, refletir e arguir“, escrito e publicado em 2015 pelo jornalista Eduardo Gomes de Andrade, sem apoio das leis de incentivos culturais. A obra foi ilustrada por Generino.

Capítulo:

Um bicheiro por uma estátua

Hoje Cuiabá nega com convicção labial, mas durante anos a elite e o poder mato-grossenses concentrados nesta capital quase tricentenária vibravam quando conseguiam um minutinho ao lado do ex-policial civil transformado em comendador, o Comendador João Arcanjo Ribeiro, dono do jogo do bicho, dos cassinos, de poderosas factorings e empreendimentos que englobavam – ou ainda englobam? – várias atividades na ensolarada Terra de Rondon.

O Comendador Arcanjo reinava absoluto. Em público, nas entrevistas, nas solenidades e nas missas das cinco na bicentenária Igreja Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, em Cuiabá, seu semblante era o mais cândido possível. Não se via segurança a sua volta. Não tinha gestos bruscos. Não portava arma ostensivamente, se é que carregava algum trabuco na cinta ou na canela.

Seu título foi apenas mais um mimo da classe política que tanto o cultuava. É, o Comendador era cult e cultuado. Em 1987, quando vereador por Cuiabá, Marcelo Ribeiro lhe concedeu a comenda da Ordem do Mérito, que criou a auréola rotular, com a qual passou a se identificar e a ser identificado: Comendador Arcanjo. Depois, o vereador Wilson Coutinho lhe outorgou o Título de Cidadão Cuiabano, com o sim unânime de seus pares. A honraria maior viria em 5 de dezembro de 1997, quando o deputado Paulo Moura o presenteou com o Título de Cidadão Mato-grossense, com a Mesa Diretora e o plenário da Assembleia de pé, aplaudindo freneticamente.

Pena que depois da queda do império do Comendador Arcanjo a Câmara tenha cassado sua comenda da Ordem do Mérito e a Cidadania Cuiabana, que tão bem lhe caíam e o faziam a cara da vereança de Cuiabá.

O Comendador Arcanjo reinava em Cuiabá e por onde pisasse em Mato Grosso sem que o Ministério Público Federal (MPF), o Ministério Público Estadual (MPE), a Polícia Militar, a Polícia Civil e a Polícia Federal fizessem algo para botar fim à jogatina e ao bicho que se dava ao luxo de divulgar as extrações diárias da Loterias Colibri no rádio e na TV.

Por volta das 15h da segunda-feira 30 de setembro de 2002, na Rua Professora Tereza Lobo, em Cuiabá, defronte ao jornal Folha do Estado, o empresário Domingos Sávio Brandão de Lima Júnior, dono e fundador daquele periódico, foi executado a tiros e o império do Comendador Arcanjo começou a desmoronar.

O assassinato de Sávio Brandão foi debitado ao Comendador Arcanjo, que era denunciado pela Folha do Estado de ser chefe do crime organizado em Mato Grosso.

O sangue de Sávio Brandão clamava por justiça, mas Mato Grosso se fazia de morto. O assunto era tratado com cautela pela indefesa população. Não havia nenhum indício de que o assassinato seria passado a limpo, nem se notava nenhuma movimentação no sentido de se chegar ao Comendador Arcanjo.

O governador tucano Rogério Salles sentiu que precisava tomar providência antes que o crime organizado saísse da penumbra e assumisse de vez as rédeas o Estado. No começo de outubro de 2002, Rogério foi recebido em audiência pelo ministro da Justiça, Renan Calheiros, para falar sobre a violência em Mato Grosso.

O governador disse ao ministro que a situação era insustentável, que MPF, MPE e a polícia tinham conhecimento do quadro e que faltava apenas um operação para desmantelar o crime organizado antes que fosse tarde demais.

Renan tentou contemporizar. Rogério foi curto e grosso: “Esta aqui é a chave do meu gabinete. Ou o senhor conserta Mato Grosso ou manda alguém para assumir o governo”. Renan deu um sorriso amarelo.

Dois meses depois da audiência a Operação Arca de Noé desmantelou o esquema do Comendador Arcanjo, que fugiu para o Uruguai, onde foi preso.

O ex-homem forte insiste que não mandou matar Sávio Brandão. Também nega que tivesse cometido outros crimes, mas acabou enrodilhado por um cerco muito poderoso. Sua situação é complicada: foi condenado até por posse ilegal de um revólver e a pena foi aplicada açodadamente antes que o Estatuto do Desarmamento estivesse vigorando, o que levou a justiça a revogá-la.

Numa busca e apreensão da Arca de Noé numa das factorings do Comendador Arcanjo, em Cuiabá, o MPE encontrou 22 notas promissórias emitidas em 1999 e 2000 pelo então presidente da Assembleia Legislativa, Humberto Bosaipo (PL), e o primeiro-secretário José Riva (PSDB), com valores de R$ 700 mil ou pouco mais ou menos que essa importância, que juntos perfazem R$ 15,4 milhões. Bosaipo fez silêncio sobre a apreensão. Riva alegou que se tratava de caução por um negócio que não foi realizado. O favorecido encontrou justificativa comercial. Em resumo: tais promissórias podem ser consideradas fortes indícios da relação do ex-homem forte com o poder político mato-grossense.

O procurador da República Pedro Taques soube tirar uma casquinha da Operação Arca de Noé, mudou-se para as páginas dos jornais e dos sites e por tempo virou manchete crônica das TVs e do rádio. Depois se elegeu senador e governador. Resumo: Cuiabá ficou livre do Comendador Arcanjo, mas em compensação Mato Grosso ganhou um governador        que não governa, porque dentro dele vive um procurador da República, como ele próprio reconhece e admite, mas sem dar a mão à palmatória sobre sua omissão no caso que levou Rogério a jogar a chave sobre a mesa de Renan.

Da REDAÇÃO

ILUSTRAÇÃO: Generino

 

 

Comentários estão fechados.

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Vamos supor que você está bem com isso, mas você pode optar por sair, se desejar. Aceitar Leia Mais

Política de privacidade e cookies