Um alfaiate centenário em Cuiabá
Cuiabá, noite de 04 de abril de 2018. Salão superlotado para o aniversário. Ao seu lado a família. Num ambiente festivo com muitos convidados, inclusive figuras de destaque ele é o centro das atenções. No peito uma mistura de felicidade e tristeza. No momento de soprar 100 velinhas o aniversariante tinha em sua celebração apenas um amigo de infância: o major do Exército Adriano Amorim, de 98 anos. O tempo, tão generoso com ele e Adriano levou seu círculo de amizade infantil e juvenil. Mesmo cercado familiarmente o dono da festa seria um solitário social “se aquele guri (Adriano) não fosse me abraçar”, desabafa uma das figuras mais respeitadas de Cuiabá, o alfaiate Antônio Armindo Pedroso Dias, ou simplesmente seo Pedroso.
Não é fácil narrar a trajetória centenária de seo Pedroso, que até subir ao altar em 1950 com dona Ivone, ora estava numa ora em outra cidade. A dificuldade é encontrar espaço para narrar suas andanças por Corumbá, Aquidauana, Campo Grande e Rio de Janeiro, mas se dependesse apenas do que ele revela não haveria problema algum, pois sua memória, a clareza de sua voz mansa e sua rapidez de raciocínio podem produzir um grande e bom livro recheado com sua vida pautada pelo trabalho, a vontade de se aprimorar profissionalmente e a dedicação familiar. Isso, claro, sem abrir mão de uma Brahma bem gelada que ele sempre gostou e que incontáveis vezes foi pano de fundo – sem trocadilho com sua profissão – nas longas conversas com o amigo escritor Rubens de Mendonça no extinto Bar do Bugre.
Filho de seo Armindo e dona Jorgina Pedroso Dias, ambos poconeanos, seo Pedroso também nasceu em Poconé. Os Pedroso tiveram dois filhos, Euclides, o caçula, que morreu vítima de varíola, e ele. A vida naquela cidade não estava fácil. Em 1929 sua família decidiu tentar a sorte em Cuiabá. Naquele ano, ao ser matriculado no internato do Colégio Salesiano São Gonçalo, ao lado do saber também encontraria sua profissão.
Além da grade curricular o São Gonçalo oferecia aos alunos cursos profissionalizantes de alfaiataria, carpintaria, sapataria, ferraria e outros. O guri Pedroso, com 11 anos frequentava aulas no período matutino e teria que aprender algum ofício à tarde. Encantando com os jalecos dos professores, as batinas dos padres, os hábitos das freiras, os paletós dos pais de alunos que os visitavam, pensou com seus botões – novamente sem trocadilho – “serei alfaiate”. Com esse objetivo, durante seis meses mergulhou nos ensinamentos do mestre italiano José Gioca. Certo dia, muito pálido, foi levado à direção do colégio. O suposto diagnóstico o retirou da sala de aula e do curso: um funcionário do São Gonçalo disse que ele estaria anêmico. Mandado para casa, logo se recuperou, mas perdeu a vaga de estudante.
Em 1930 a Escola Estadual Barão de Melgaço o recebeu de braços abertos, mas não lhe oferecia curso profissionalizante. Com um olho nas aulas e outro na sobrevivência o guri Pedroso encontrou emprego na Alfaiataria Silvério Guimarães – transcorridos 88 anos continua exercendo a profissão. Era aprendiz no período vespertino, depois da manhã tomada pelas aulas e o dever de casa. Misturando um semestre do curso – de quatro anos – de alfaiate no São Gonçalo com a prática no manuseio da tesoura e da máquina Singer de pedal, aprendeu a costurar calças e sentiu a maturidade precoce ao botar dinheiro no bolso.
Aventureiro, Pedroso em 1938 pegou uma chalana no rio Cuiabá. Corumbá, à época um dos portos mais movimentados da América do Sul, foi seu destino. Durante o dia era alfaiate. À noite trabalhava de “farol” no Cassino e Boate Camilo. Farol é o funcionário da casa que ocupa lugar na mesa do bacará, ou na roleta, até que chegue alguém endinheirado ao qual cede assento – típica conduta nos ambientes de apostas.
Dona Jorgina morreu em 1942 e ele estava ao seu lado em Cuiabá, para onde voltou pouco antes. Continuou alfaiate, sempre alfaiate. Exercia a profissão na Alfaiataria Albernaz. Nos momentos de folga era meia-esquerda do Comércio Esporte Clube, presidido pelo farmacêutico Manoel Soares de Campos, pai do ex-governador Frederico Campos. Ainda naquele ano, em sociedade com o amigo Apolônio de Souza, montou a Alfaiataria Capitólio, na Rua Ricardo Franco. O Brasil entrou em guerra com o Eixo e o Exército o convocou para o serviço militar. Apolônio segurava as pontas, sozinho. O soldado Pedroso não embarcou para a Itália juntamente com os Pracinhas, e um ano depois foi dispensado.
Nenhuma sociedade comercial resiste à ausência de um dos sócios. Alfaiataria Capitólio virou coisa do passado. Seu espírito nômade continuava e o Rio de Janeiro foi seu destino. No Largo do Machado, no coração do Rio, o italiano Molinari lhe ensinou novos cortes, “foi um bom aperfeiçoamento”, reconhece.
O olhar apaixonado da diamantinense Ivone botou freio em suas andanças e a última foi ao altar para o “sim” que há 68 anos resiste às intempéries matrimoniais, ainda mais quando reforçado pelos laços de seis filhos (Edson, Edna, Ione, Maria Auxiliadora, Edmir e Edmar), 11 netos e cinco bisnetos.
Seo Pedroso ganhou fama em Cuiabá não somente pela longevidade de sua carreira, mas pelo conjunto de sua atividade profissional. Confeccionou mais de três mil ternos. Entre seus clientes os governadores Fernando Corrêa da Costa, José Fragelli, Frederico Campos, Carlos Bezerra, Jayme Campos “e até governador de Rondônia”, diz com naturalidade. Outros políticos e figuras mato-grossenses usaram sua grife. “Fiz o uniforme de formatura do curso Primário do Gabriel Novis e dos irmãos dele”, revela. Gabriel Novis foi o primeiro reitor da Universidade Federal de Mato Grosso e enquanto médico fez mais de 17 mil partos. “Sabe quem fez o terno do casamento de Jayme (Campos) com a (prefeita de Várzea Grande) Lucimar Campos? Fui eu – responde”.
O tempo tão generoso com seu Pedroso também lhe faz cobranças. Há duas décadas ele usa menos a tesoura, o dedal e a agulha, mas mesmo assim permanece firme durante o expediente na Pedroso Moda Masculina, à Rua 24 de Outubro, no centro de Cuiabá. Durante décadas teve na vizinhança boa parte das principais lideranças políticas de Mato Grosso. Abria a porta da alfaiataria e se deparava com os vizinhos Frederico Campos, Júlio Campos, Jayme Campos, Ranulpho Paes de Barros, Antero Paes de Barros, Roberto França, José Benedito Canellas, Zanete Cardinal, Augusto Mário Vieira e outros. Hoje, não tem mais vizinhos famosos. A fama é a dele, adquirida ano após anos, década após década, terno após terno. É um menino centenário apesar da incômoda bengala que ampara seu caminhar lento no mundo que há 100 anos é seu cúmplice
Eduardo Gomes/blogdoeduardogomes
FOTO: Dinalte Miranda/DC
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