Os exames de sangue que prometem prever doenças e revelar ‘idade real’ do corpo
Daniel Gallas
Role,Da BBC News Brasil em Londres
Nos últimos anos, tornou-se comum o uso de relógios e pulseiras que ajudam as pessoas a monitorar diversos aspectos de suas vidas que antes eram ignorados: as horas precisas de sono à noite, os batimentos cardíacos, a quantidade de passos dados durante o dia, as calorias queimadas ou o nível de oxigênio no sangue.
Surgiram novas empresas de tecnologia e saúde que prometem ajudar as pessoas a “hackearem” a sua saúde — ou seja, medir em números alguns aspectos da sua saúde e intervir diretamente em seus corpos, adotando dietas, mudando padrões de sono, fazendo exercícios físicos específicos e tomando suplementos ou remédios.
O termo usado por muitas dessas empresas é biohacking — ou seja, reprogramar o próprio corpo da mesma forma que hackers reprogramam computadores.
Agora, algumas novas empresas — principalmente nos Estados Unidos e na Europa — prometem dar um passo além.
Elas oferecem exames de sangue que prometem monitorar biomarcadores, sinais dentro dos nossos corpos que são mensuráveis e que podem nos fornecer informações sobre o estado atual da nossa saúde.
Esses sinais podem ser desde moléculas, a genes e a níveis de hormônios e vitaminas.
As empresas coletam essas informações com alguma frequência — de três em três ou de seis em seis meses — e oferecem diversos serviços a seus clientes.
Algumas empresas usam os dados para calcular a “idade biológica real” ao comparar os biomarcadores de uma pessoa com os do resto da população. É o chamado “relógio epigenético”.

Uma pessoa pode ter 60 anos de idade, por exemplo, mas ter “um corpinho de 50”. Assim, embora a idade considerada real — ou cronológica — seja 60, diversos biomarcadores indicam que seu corpo é comparável ao de alguém de 50 anos.
Um desses biomarcadores pode ser, por exemplo, a chamada metilação do DNA.
Trata-se de um processo químico que acontece dentro das nossas células, mas sem alterar a estrutura do DNA.
Cientistas acreditam que existe uma ligação forte entre a metilação do DNA e a idade “biológica”. E existem processos em estudo que poderiam ajudar a conter e até mesmo reverter a metilação.
O que essas empresas afirmam é que a idade “biológica” pode ser mais relevante para a saúde de uma pessoa do que sua idade cronológica ou real.
Além disso, ao contrário da idade cronológica, existiriam formas de intervir e fazer a idade regredir biológica — até certos limites —, com mudanças de hábitos, estilos de vida e uso de suplementos.
Além da ideia de “hackear” o próprio corpo, alguns biomarcadores poderiam servir como alertas para doenças, como câncer.
Ao mesmo tempo, a multiplicação de empresas que oferecem esses serviços é alvo de críticas entre especialistas que alertam que isso pode gerar uma demanda desnecessária por serviços que são caros e podem desencadear um ciclo interminável de exames e tratamentos.
Isso estaria mais a serviço dos interesses financeiros das companhias que atuam no setor do que de seus clientes.
Eles também alertam que a tecnologia não é 100% precisa e pode levar a diagnósticos equivocados e que as promessas de algumas empresas que apresentam seus serviços como um “elixir da juventude” pode ludibriar consumidores.
Idade biológica
A ideia de monitorar biomarcadores não é nova. Na verdade, qualquer exame de sangue feito em laboratório há décadas já são testes de biomarcadores.
A hemoglobina A1c, uma molécula presente nas células do nosso sangue, por exemplo, é um biomarcador para diagnosticar diabetes.
As duas grandes novidades no setor são o desenvolvimento de tecnologias para analisar esses dados e, principalmente, a queda nos custos de fazer estes exames.
“Esse teria sido um produto muito difícil de lançar no mercado há dez anos, porque o custo de exames era muito mais alto”, diz à BBC News Brasil o presidente da Lifeforce, Dugal Bain-Kim.
No Brasil, laboratórios de exames já fazem análises de biomarcadores há anos, sob pedido dos médicos. Mas ainda não existe no mercado brasileiro empresas como essas que estão surgindo na Europa e nos EUA, em que diversos biomarcadores são monitorados em conjunto e com periodicidade frequente.
A Lifeforce é uma das empresas que surgiu no boom recente do mercado de biomarcadores.
“O custo dos testes caiu e, pelo menos nos Estados Unidos, por meio de serviços de coleta [de sangue] em casa, você pode fazer esse tipo de coisa a um preço muito mais acessível.”
Fundada há três anos na Califórnia, a Lifeforce afirma já ter realizado mais de 50 mil exames de sangue.
O modelo de negócios desta e de outras empresas do tipo é parecido com o de outros negócios de tecnologia como Netflix ou Spotify, baseado em assinaturas.
Ao contratar o serviço, o cliente tem seu sangue examinado de tempos em tempos — indo a um centro de coleta ou usando kits caseiros.
As empresas dizem que conseguem reduzir os preços dos exames devido ao alto volume com que costumam lidar.
A Function Health — outra destas novas empresas — afirma que, se uma pessoa fosse encomendar no mercado cada um dos exames de biomarcadores de seu pacote, gastaria cerca de US$ 15 mil (quase R$ 80 mil).
A assinatura anual da Function Health custa cerca de US$ 500 (R$ 2,6 mil). A empresa oferece exames anuais de mais de 100 biomarcadores e testes trimestrais ou semestrais de outros 60.
Já o pacote da Lifeforce custa US$ 349 (R$ 1,8 mil) no primeiro mês e depois US$ 129 (R$ 680) por mês.
A empresa testa com frequência 40 biomarcadores, como hormônios, nutrientes e condições metabólicas, e oferece um acompanhamento por uma equipe médica, que cria um plano personalizado para “otimizar” a saúde do assinante.
‘Medicina 3.0’
Um dos lemas repetidos pelas empresas é “pare de adivinhar, comece a medir”.
“Quando perguntamos a nossos clientes ‘você é saudável?’, a resposta mais comum é ‘acho que sim, porque não estou doente ou não tenho nenhuma doença grave’”, afirma Bain-Kim, da Lifeforce
“Mas, quando realmente analisamos o que está acontecendo ‘embaixo do capô’, 25% dos novos membros estão com a saúde abaixo do ideal; 23% deles estão em estágio de pré-diabetes, por exemplo. E a maioria não sabe disso.”
Os resultados dos exames são colocados em um painel de um aplicativo que exibe os dados em gráficos de forma didática.
O primeiro passo é usar os biomarcadores para tentar detectar as doenças mais preocupantes — como problemas cardíacos, câncer e demência.
Outro objetivo dos exames é montar planos personalizados para fazer a idade biológica regredir e melhorar a qualidade de vida dos clientes.
“Um dos grandes problemas no setor de saúde para os consumidores é a fragmentação [das informações]”, diz Bain-Kim.
“As pessoas falam com seus médicos, mas depois tomam um suplemento, talvez porque viram no Instagram, e adotam uma dieta que viram em outro lugar. O consumidor acaba tendo que integrar todas essas informações sozinho.”
Os planos incluem planejamento de dieta, estresse, sono, suplementos e medicamentos — já que a empresa conta com médicos que podem receitar.
Mas por que alguém assinaria um plano de monitoramento de saúde tão detalhado?
Para se manter com a saúde em dia, não bastaria realizar uma bateria de exames comum e seguir as recomendações de praxe, como comer bem, se exercitar ou controlar as horas de sono?
Este é um grande debate no mundo da Medicina hoje em dia.
A noção de que as pessoas devem realizar mais exames se popularizou graças às novas empresas que surgiram no setor e também a médicos que escrevem livros e falam sobre o assunto no YouTube.
Um dos livros mais influentes é Outlive: A Arte e a Ciência de Viver Mais e Melhor (Intrínseca, 2023), do médico canadense Peter Attia, em que ele diz que o mundo está chegando um ponto que chama de “Medicina 3.0”.
Segundo o livro, nos dois estágios anteriores, a medicina se desenvolveu como uma ciência e ajudou a tratar condições graves de saúde.
No terceiro, que estaria começando agora, poderá ajudar a estender a vida das pessoas com foco na prevenção e não no tratamento de doenças.
Isso só seria possível, segundo Attia, por causa do desenvolvimento tecnológico da humanidade.
Attia defende que as pessoas monitorem — com o devido acompanhamento médico — diversos biomarcadores com frequência.

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