Não deixe Jarudore sangrar

Esquartejamento social. É isso que Jarudore teme. Teme muito numa mistura de dor, ansiedade, insegurança, impotência e abandono. Abandono por seu próprio país, o Brasil. Desde 28 de junho, quando o juiz da 1ª Vara Federal de Rondonópolis, Victor de Carvalho Barbosa Albuquerque, sentenciou o fatiamento daquele distrito para efeito de desintrusão, sua população sofre a cada pôr do sol que marca o fim de mais um dia. Um dia a menos para a – pelo amor de Deus, que isso não aconteça! – a chegada da polícia para botar as famílias no olho da rua e transformar aquela terra em reserva indígena dos bororos.
O fatiamento é cruel. É a face menos humana do Estado Brasileiro. O juiz decidiu que em até 45 dias – a contar de 28 de junho – os moradores numa área de 1.930 hectares peguem suas tralhas e saiam de suas casas. E que em 90 dias – tendo o mesmo marco temporal – os que residem numa região com 1.730 hectares façam o mesmo. Cumpridas as duas desintrusões restarão 1.046 hectares que compreendem a vila de Jarudore e seu entorno.
A área global de Jarudore é de 4.706 hectares. O fatiamento ilha a vila e força seu esvaziamento, uma vez que a mesma fica contornada quase em 360 graus por terra indígena. O próximo passo será o pontapé nos remanescentes daquela comunidade consolidada há 74 anos, à margem do rio Vermelho, onde anteriormente havia uma estação telegráfica construída pelo herói Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon – o município é Poxoréu no polo de Rondonópolis.
Por todos os lados, em Jarudore, o que se vê são brasileiros em desespero. Uma população pacífica, que desconhece onda de criminalidade e onde ao lado das próprias a oração diária que se faz é a do trabalho no campo e no comércio de vila.
Mesmo em desespero Jarudore resiste. Temendo mais resiste pacificamente com seus homens de mãos calejadas, suas mulheres guerreiras, sua juventude bonita, seus anjos pequeninos, seus anciãos pioneiros, seu coração coletivo onde também também corre um rio Vermelho. Um pedido de efeito suspensivo (à decisão do juiz em Rondonópolis) está no gabinete do desembargador João Batista Moreira, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, à espera de apreciação. A população aguarda por uma notícia de Brasília, que tanto lhe garantirá o céu na terra ou o inferno no país onde nasceram suas gerações formadas por bisavós, avós, pais, filhos, netos e bisnetos.
O silêncio fora de Jarudore fere tanto quanto a agonia que ali se vive. Seus moradores sabem o que aconteceu em dezembro de 2012 com a vila de Estrela do Araguaia, que era chamada de Posto da Mata. Em nome de uma desintrusão para os índios xavantes, uma força policial desencadeou uma operação de extrema violência: demoliu casas, igrejas, escolas, postos de saúde, comércio, derrubou cerca, entupiu cisternas, transformou em pesadelo o sonho coletivo de quase seis mil brasileiros. Moradores urbanos e rurais foram arrancados de seus lares, jogados à beira do caminho. Covarde, o Estado Brasileiro virou as costas para aquela gente, fingiu e finge não ver seu drama social – o Brasil brutal destruiu inclusive a documentação escolar, o que criou embaraços burocráticos para os brasileiros que ali estudavam.
Posto da Mata era uma comunidade urbana no entroncamento das rodovias federais 158/242, nos municípios de Alto Boa Vista e São Félix do Araguaia – sua área rural também se estendia por Bom Jesus do Araguaia numa gleba de 155 mil hectares, denominada fazenda Suiá-Missú, mas na região conhecida como fazenda do Papa e que anteriormente pertencia à multinacional italiana Agip Petroli, representada no Brasil pela Agip, que a doou ao governo brasileiro quando da Eco-92 no Rio de Janeiro.
Mato Grosso continua sangrando por Posto da Mata. Algo precisa ser feito por Jarudore, para que o sangramento mato-grossense não aumente ainda mais.
Levante sua voz. Lute agora por Jarudore, pois o prazo para sua defesa é curto. Viralize esse alerta. Que ele ganhe eco no Congresso Nacional, que chegue ao Ministério da Justiça e Segurança Pública e ao presidente Jair Bolsonaro.
Breve histórico sobre Jarudore

1926 – O Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon constrói uma estação telegráfica à margem do rio Vermelho.
1945 – Mato Grosso cria a vila de Jarudore ao lado da estação telegráfica. Naquele mesmo ano, atendendo pedido do Marechal Rondon, o Estado destina aos bororos uma área de 4.791,33 hectares (corrigida para 4.706 hectares) desmembrada de outra, do Estado, pelo Decreto 664, de 18 de agosto, baixado pelo interventor federal Júlio Müller.
Rondon era estrategista e defendia os índios. Ao pedir a terra para eles, queria assegurar que os mesmos tivessem um ponto de apoio – ao lado do telégrafo – para sua viagens embarcadas pelo rio Vermelho (que eles chamam de Poguba) entre as suas reservas nas chamadas terras altas e suas aldeias no Pantanal.
1947 – Em 26 de junho, o governador Arnaldo Estevão de Figueiredo cria a Escola Estadual Franklin Cassiano da Silva, em Jarudore, como parte da política de instalação de escolas em pontos estratégicos na região de Rondonópolis, para assegurar educação aos filhos dos colonos pioneiros que ocupavam o vazio demográfico nas calhas dos rios São Lourenço e Vermelho. Essa escola é uma das referências do lugar.
1958 – Em 20 de agosto O Cartório do Registro de Imóveis da Comarca de Poxoréu averba a matrícula 3.547 da área de Jarudore para a Funai.
Em 25 de dezembro o governador João Ponce de Arruda sanciona a Lei 1.191 criando o Distrito de Paz de Jarudore no município de Poxoréu, com base num projeto de lei do deputado Mário Spinelli (PSP) aprovado pela Assembleia Legislativa.
1973 – Somente o capitão bororo Henrique, a mulher dele, dona Ana, e a filha do casal e professora no distrito, Maria, residem em Jarudore. Os demais de sua etnia abandonaram Jarudore e mudaram para a reserva Sangradouro/Volta Grande. “Capitão” era designação de cacique.
1978 – Bororos levam o capitão Henrique e seus familiares para a reserva Sangradouro/Volta Grande. Com a saída da família, a área onde viviam é ocupada pelo capitão José Luiz Quearuvare – também grafado Kiaruvare. Naquele ano o capitão José Luiz deixa Jarudore.
2006 – Em 22 de junho a cacique Maria Aparecida Tore Ekureudo, da reserva Sangradouro/Volta Grande chega a Jarudore à frente de um grupo de 32 bororos, ocupa um sítio distante 7 quilômetros da área urbana e cujo posseiro é estranho aos moradores, e fixa o cartaz: “Área Indígena Aldeia Nova Bororos”.

No dia 25 de junho o procurador da República em Mato Grosso, Mário Lúcio Avelar, e o procurador Federal Cezar Augusto Lima Nascimento, representando a Funai, ingressam com uma Ação Civil Pública com pedido de liminar de antecipação de tutela específica, ao juiz da 3ª Vara da Justiça Federal em Cuiabá, César Augusto Bearsi, pela reintegração da área de Jarudore aos bororos. Até então os bororos não habitavam aquela área. Posteriormente, com a criação da Justiça Federal em Rondonópolis, a ação passou a tramitar na 1ª Vara daquela cidade.
Quem descobriu o sítio desocupado temporariamente que em seguida seria ocupado pelos bororos foi João Osmar Lopes, o Gaúcho, genro da cacique Maria Aparecida. Gaúcho trabalhava numa linha de leite e conhecia bem a região.
Desde a chegada dos bororos Jarudore passou a enfrentar problemas de diversas naturezas.
Solução
Jarudore é antropizada e ocupada mansa e pacificamente há 74 anos. Uma composição satisfatória para todos seria o Estado adquirir uma área igual ou maior ao distrito, e anexa a uma das reservas dos bororos, e lhes dar em compensação por aquela onde efetivamente nunca foram aldeados. Para que isso aconteça seria necessário uma ampla costura política e amparo da União em seu sentido mais amplo.
Eduardo Gomes de Andrade – editor de blogdoeduardogomes
FOTOS: blogdoeduardogomes
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