MT – De melhor região

Nem um ruído sequer. O jogo de pilhas acabou. O silêncio sepulcral tomou conta do pequeno rádio. Sem ele, que tocava músicas e apresentava o horário eleitoral paulista, fiquei ainda mais só, completamente isolado. Entre eu e o mundo havia 17 quilômetros de floresta com um rasgo estreito a nos ligar – era a única janela para fugir da solidão.
Silêncio total, absoluto. Os dias se arrastam. A chuva não dá trégua. Anoitece. Na cama improvisada, busco o sono que teima em não vir. As águas cessam. O barulho da mata noturna dá sinais de vida. De repente, na porta, escuto: “Eduardo!”. Não respondo. O chamado se repete: “Eduardo!… Eduardo!… Eduardo!...”. Reflito: o rasgo estreito na mata é um imenso atoleiro; nenhum carro chegaria até a porta sem que ouvisse seu barulho e visse seu farol pelas frestas da parede de tábuas. Continuo refletindo: a pé ninguém se atreveria… Rezo o Credo, pois aquilo poderia ser alma do outro mundo. Porém, a zoada continua: “Eduardo!… Eduardo!… Eduardo!…”. Em silêncio pego a 16 de dois canos. Cauteloso, cutuco a tramela com seu cano. O vento forte empurra a porta para o canto escancarando-a. Nheeeeeeem! – geme a dobradiça. O dedo firme no gatilho, deitado no chão, estou atento. Ninguém entra… Nem sinal de gente… O barulho continua e noto que está junto ao chão batido da varanda. É um sapo na escuridão da quarta-feira, 11 de outubro de 1978 num cantão ermo de Mato Grosso que alguns anos depois seria vizinhança da cidade de Nova Ubiratã, no Nortão.
Bem antes desse sapo que me chamava pelo nome, tive bons encontros com o Nortão. No carnaval de 1974 um atoleiro na Estrada do Rio Novo engoliu as rodas traseiras da C-10 em que viajava, o que me forçou a caminhar mais de uma légua com água nas canelas e com fome até uma balsa no rio Paranatinga, que um pouco mais abaixo vira Teles Pires. Vivi o Correntão do Exército em Posto Gil, para identificação e vacinação obrigatória contra a malária. Dirigi sobre o rastro dos tratores que rasgavam a BR-163. Vi cidades nascerem.
Acompanhei a chegada dos parceleiros pioneiros que fundaram Itanhangá na sexta-feira 12 de agosto de 1994. Respirei o ar da morte na clareira aberta pelo jato do Voo Gol 1907 que caiu perto do Xingu com 154 ocupantes e nenhum sobreviveu. Presenciei dramas de vítimas da malária em busca de quinino nas farmácias da Rua do Comércio em Peixoto de Azevedo no ciclo do ouro.
No Nortão estou em casa, onde a terra se abriu para receber o corpo de minha mãe Alzira Soares de Andrade, a Dona Filhinha, que repousa em paz no cemitério de Marcelândia.
Portanto, Nortão não é terra estranha para mim. Ao contrário, tenho muita identificação com aquela região, que me proporcionou alegrias e tristezas.
Afrânio Carlos da Silva foi bom amigo e colega de redação. Sonhava alto com o amanhã no Nortão, embora morasse em Cuiabá. Viajamos juntos da capital para Sinop com uma rápida passagem por Diamantino. Saímos no ensolarado domingo 16 de março de 2003. O carro quebrou perto de Lucas do Rio Verde. Um guincho nos levou até lá, onde o prefeito Otaviano Pivetta nos emprestou um automóvel para que fôssemos a Tapurah. O reparo mecânico demoraria dois dias.
Na segunda, 17, à noite, embarquei em Lucas num ônibus de volta para a capital. Afrânio permaneceu até a sexta 21. Aproveitou a viagem para rever amigos, falar sobre política – sua paixão – e apresentar sua Revista do Interior, que circulou pela primeira e única vez.
Sozinho, Afrânio viajava na 163 para casa. Ao lado da vila Aparecidinha, município de Diamantino, seu carro cruzou a pista e bateu de frente com uma carreta. O impacto foi violento demais e ele ao olhar em volta viu que não estava mais entre nós, mas no reino de Deus.
Sempre cruzo a 163 no ponto fatídico. Ali, em silêncio, elevo uma prece a Deus. Uma estranha sensação me deixa arrepiado. Depois da oração, buzino e dou adeus dizendo o nome do meu amigo. Descanse em paz, companheiro!
Colhi belas histórias de lutas e dramáticos relatos de quem sofreu no Nortão. Seus personagens dão vida a esse capítulo sobre as 5 Regiões de Mato Grosso, que embora cite números e datas não tem pretensão de conteúdo histórico nem estatístico. Sua meta é apenas mostrar a região como ela é.
O que me levou a postar esse capítulo foi minha identificação com o Nortão. O fiz enquanto jornalista e não aceito o rótulo de escritor, por entender que somente exerce essa profissão quem sobrevive com a venda de livros, o que não acontece em Mato Grosso com nenhum dos autores, e menos ainda comigo, que não tenho respaldo das leis de incentivo cultural.
Mais: senti a necessidade de produzir esse capítulo porque a intelectualidade mato-grossense ainda não voltou seu olhar sobre o Nortão. Mesmo com minha limitação, cataloguei o conteúdo ora apresentado e o fiz com o coração.
Dificilmente alguém conseguirá mostrar o Nortão em sua dimensão num espaço editorial tão curto. Mesmo assim, atrevo-me a apresentar a californiana região mato-grossense da qual o Brasil deve se orgulhar e o planeta tem que aplaudir por sua relevância para a política de segurança alimentar mundial.
Ao internauta mato-grossense que mora fora do Nortão: debruce sobre o computador ou celular. Devore o capítulo, mas não seja ambicioso: sugira que sua família e seu círculo de relacionamento também o leiam, não pela autoria, mas pela região abordada, que embora seja conhecida nacionalmente continua estranha em nossa terra exatamente por falta de postagens iguais a esta.
Ao leitor morador no Nortão meus parabéns por viver num lugar extraordinário. Compartilhe o capítulo com os seus que continuam em sua cidade de origem, para que saibam o quanto você acertou ao escolher esta terra que ganhou sopro de vida com a abertura da 163 – a Cuiabá-Santarém.
Tomo a liberdade de postar uma foto minha ao lado do coronel EB José Meirelles, o oficial que comandou o 9º Batalhão de Engenharia de Construção (9º BEC) quando da abertura da 163 no Nortão. Mantive bom relacionamento com Meirelles e sempre reverencio sua memória.
Muito obrigado aos que contribuíram com essa postagem. O Nortão os espera em blogdoeduardogomes.
Boa leitura sobre a melhor região do mundo.
Eduardo Gomes de Andrade -editor de blogdoeduardogomes
eduardogomes.ega@gmail.com
PS – A postagem do capítulo é identificada com o indicativo MT –
Só elogios ao texto e contexto
Como sempre uma leitura NECESSÁRIA pra se entender MATO GROSSO.
Jair Mariano