Boa Midia

Especial UFR – Muito medo do confessionário

Padre Miguel tinha muitas virtudes, com as quais se tornou conhecido em Rondonópolis e região. Mas, foi com o rigor de suas penitências que ganhou fama. Uma simples e quase maquinal olhadela de canto de rabo de olho numa morena-arrasa quarteirão revelada no confessionário resultava no dever de rezar de joelhos umas 40 Ave-Maria e uns 20 Pai-Nossos.

Fiéis e frequentadores esporádicos da Igreja Bom Pastor, no bairro do mesmo nome, em Rondonópolis, onde padre Miguel oficiava missas, ministrava sacramentos e tomava confissões sabiam da dureza de suas penitências.

O rigor do sacerdote com seu rebanho assustava, mas a cidade o respeitava muito; sua condição de líder espiritual não era contestada nem mesmo junto a outras denominações religiosas. Rondonópolis conhecia sua história e o admirava por sua opção pela evangelização.

Paraguaio de Assunção, o engenheiro civil Miguel Angel Rodas Ortiz nasceu em 17 de abril de 1923. Em 1952 chegou a Rondonópolis com o canudo da faculdade debaixo do braço, para trabalhar na antiga CR, que mais tarde seria DNER e posteriormente Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit).

O doutor Miguel era igual aos jovens de sua época. Namorava e chegou a ficar noivo. Bom de bola foi meia direita e técnico do Rodoviário Esporte Clube e titular da seleção de Rondonópolis. Tocado pela fé deixou tudo pela vida sacerdotal, sendo ordenado padre naquela cidade em 26 de março de 1966, pelo bispo Dom Vunibaldo Godehardo Tauller permanecendo entre nós até 19 de junho de 2008, quando passou a celebrar no céu.

Com a ordenação, as rodovias perderam um engenheiro meticuloso e o velho Estádio Engenheiro Lutero Lopes ficou sem um de seus astros. Em compensação, a Igreja Católica Apostólica Romana ganhou um sacerdote voltado para a espiritualidade e sem nenhum apego material.

Em meados dos anos 1970 o bairro Bom Pastor não tinha espaço para se armar circo e ainda hoje não o tem. As companhias circenses estendiam suas coloridas lonas na Praça dos Carreiros, à época sem urbanização e que, na verdade, era uma mistura de pontos de táxi e de caminhões de frete, e aos sábados recebia a feira livre que mais tarde seria transferida para Vila Aurora.

Numa sexta-feira pela manhã chegou a Rondonópolis o Gran Circo Vancouver, com seus leões, elefantes, macacos, palhaços, malabaristas, contorcionistas, motoqueiros do globo da morte, trapezistas, bailarinas e outras atrações.

O circo foi armado com rapidez. O imponente tamboril frondoso perto do cruzamento da Avenida Marechal Rondon com a Rua Dom Pedro II, num dos cantos da praça, garantia a sombra aos elefantes confinados num cercado em seu entorno.

No corre-corre da cidade que fervilhava com a novidade da lavoura da soja e seus efeitos sobre a economia, muitos não viram o circo armado. Para divulgá-lo um carro de som percorria as ruas acompanhado por outro, que arrastava um reboque cheio de leões.

Na sexta houve espetáculo noturno. No sábado, também, além de matinê pra criançada. No domingo se repetiria a programação da véspera. Para reforçar a propaganda o circo mandou alguns contorcionistas pra porta da igreja de Padre Miguel.

Na ponta da calçada, de um e outro lado da porta principal da igreja, dois contorcionistas ficaram postados de ponta-cabeça chamando a atenção dos fiéis que por ali passavam, enquanto crianças distribuíam anúncios com as atrações circenses.

João Rocha, mais conhecido pelo apelido de João Saliente, há muito tempo não se confessava e resolveu ir ao confessionário com o rigoroso padre Miguel. As laterais das ruas estavam cheias de carros, mas ele conseguiu uma vaga pro seu Fusquinha vermelho.

Ao descer do carro, João Saliente viu as duas figuras de ponta-cabeça. Sem pensar duas vezes, recuou, abriu a porta do Fusquinha, sentou-se no banco do motorista, deu partida e saiu a mil.

Meia hora depois, João Saliente bebe cerveja no Bar do Zé da Kibon, na calçada da Praça Brasil. Valdivino Laranjeira passa pelo local e comenta: “João, você não ia à igreja?”. “Ia, sim”, responde. Valdivino espicha o questionamento: “Por que não foi?”. “Fui sim, só não fiquei porque o padre hoje tá atacado na penitência e não consigo plantar bananeira!”.

(Zé da Kibon é como e tornou conhecido o comerciante José Caetano Filho. Valdivino Laranjeira é servidor aposentado da Secretaria de Estado de Fazenda de Mato Grosso).

 

PS – Extraído do livro  “Dois dedos de prosa em silêncio – pra rir, refletir e arguir“, escrito e publicado em 2015 pelo jornalista Eduardo Gomes de Andrade, sem apoio das leis de incentivos culturais. A obra foi ilustrada por Generino. Capa: Édson Xavier.

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