Discurso do mato-grossense Sebastião Carlos ao ser empossado na APLJ
Senhor Presidente da Academia Paulista de Letras Jurídicas, Doutor Ruy Martins Altenfelder Silva, em nome do qual saúdo a todos os componentes deste respeitável sodalício.Senhoras e Senhores.
Não poderia iniciar estas breves palavras sem antes fazer referencias a dois cidadãos aos quais o tributo da amizade, da admiração e do respeito intelectual me fazem curvar.
A um, a amizade precede aos tempos acadêmicos. Refiro-me ao professor Doutor Antônio Ernani Pedroso Calhao, vice-presidente desta Academia, e figura das mais consideradas na nossa querida Cuiabá. Aquela urbs que foi o rincão mais distante das conquistas do Oeste e que, nos contornos do dadivoso rio Paraguai, fronteiriço a outrora terra hispânica, assegurou a atual configuração geográfica e cultural a nosso país e onde se firmaram as raízes da civilização lusitana. É na vetusta capital de nosso Mato Grosso que Ernani Calhao, seguindo a senda de antepassados seus como o combativo jornalista Alcebíades Calhao, seu avô, conquistou o respeito público de nossa intelectualidade. Mas lá, em nossa terra quente e acolhedora, o meu amigo Ernani não é conhecido apenas como o estudioso do Direito, mas igualmente como um agitador cultural que luta presentemente, nas antevésperas de nossos 300 anos, para que sejam resgatadas as raízes das tradições culturais e humanistas da terra que acolheu Luís Pereira de Melo e Cáceres, o grande estadista do período Colonial, de Ricardo Franco de Almeida Serra, e gerou , Antônio João Ribeiro, Cândido Rondon, Joaquim Murtinho, D. Francisco de Aquino Corrêa, Roberto Campos, Cavalcanti Proença e tantos outros nomes significativos no panteão pátrio. Todos nós, assinalo aqui, a rendermos tributo a esta terra de Piratininga de onde, já em meados do século XVII, partiram os indômitos devassadores dos invios sertões para lá deixar tremular a bandeira da presença lusitana, e ao depois, saindo da atual Sorocoba, fixarem definitivas raizes sob o comando de Paschoal Moreira Cabral.
A outro, nacionalmente respeitado não apenas como o jurista emérito e como advogado das liberdades públicas, mas igualmente como o humanista, figura exemplar e inspiradora, ser humano de primeira grandeza. Estou me referindo ao eminente Doutor Ives Gandra da Silva Martins, cofundador desta instituição, titular da Cadeira 2, e atual Chanceler.
Honra-me ser admitido numa assembleia de tão alto relevo que, muito embora tão jovem, pois constituída juridicamente em setembro de 2009, já nasceu adulta, contando com nomes dos mais expressivos do cenário jurídico nacional, e tendo entre os membros correspondentes, nomes dos mais gabaritados, entre os quais o do respeitado Gomes Canotilho. De outra parte, é com grande satisfação que tomo posse neste cinco de julho, consagrado pela ONU como o “Dia Mundial do Meio Ambiente”, um tema candente de nossos tempos, e sobre o qual dediquei, e dedico, a maior parte de meu labor intelectual.
Por esta razão, Senhoras e Senhores, não houvessem outras, sinto-me nesta noite em grande júbilo. E neste caso me vem sempre à mente a indagação: o que leva uma pessoa a buscar a glória acadêmica que, no dizer de Machado de Assis, “eleva e consola”, e que Euclides da Cunha, ao entrar para a Academia Brasileira, afirmou não haver “nenhum posto mais elevado neste país”? Sabemos que valores, os mais altos, se colocam na meta a ser alcançada pelo intelectual íntegro e imbuído de compromissos éticos. Sabe ele que não deve estar norteado pela busca da glória vã ou a da pseudo aristocracia do saber. Neste caso podemos, em síntese, concluir que o pertencimento a ser conquistado não nos proporciona bens materiais mas, muito acima disso, o enriquecimento do intelecto e do espírito. E, se tivermos em mente o milenar ensinamento do Apóstolo Paulo, de Sic transit gloria mundi, haveremos de recordar sempre que só as conquistas do espírito nos eternizam, nos tornam imortais. E é, pois, em tal contexto que a minha admissão neste sodalício me enche de orgulho. Mas igualmente sou cônscio da responsabilidade que me recai sobre os ombros. Os que se dedicam profissionalmente à seara do Direito convivem hoje, de modo crescentemente inquietante, com incógnitas no campo da aplicação do saber jurídico. Uma dessas vertentes diz respeito à da tripartição dos Poderes, que faz parte de nossa tradição jurídica e politica. A inserção do Judiciário no campo estrito da politica por vezes espanta. A interpretação de preceitos legais, muitas vezes procedido pelo viés subjetivo do julgador, ainda que cheio das melhores intenções, tende a concentrar no Poder Judiciário prerrogativas dos demais Poderes. É bem verdade que nesse sentido parcela significativa de responsabilidade cabe ao Poder Legislativo, fragilizado tanto pela reconhecida falta de apetite cultural como pelo não menos notório déficit ético e moral de seus membros. Assim, inúmeras questões fundamentalmente politicas, que em circunstancias naturais seriam esgotadas no âmbito do Parlamento, são levadas às antes salas dos tribunais. É o que se vem denominando de judicialização da política. Ora, isto contamina de tal sorte o processo judicial que a politização do Judiciário parece estar se tornando inevitável. Não poucos publicistas tem apontado que o ativismo judicial vem ocupando um significativo espaço na pauta do Supremo Tribunal Federal. Daí resulta que a máxima Corte do país vem agindo como legislador positivo, ainda quando não exista qualquer lacuna legislativa, numa clara e afrontosa substituição do papel do Parlamento. E, se porventura tal lacuna venha a aparecer, a competência para supri-la cabe ao Legislativo. Neste caso, a dicção constitucional é no sentido de ser dada a devida ciência de tal decisão ao Poder competente para que supra a lacuna e não, indevidemente, fazer tal papel, como não raro soe acontecer.
Mesmo quando declarada a inconstitucionalidade da lei por omissão, não existe permissão constitucional para que o juiz substitua o legislador.
É indubitável que essas iniciativas legiferantes ferem profundamente os alicerces sobre os quais a República foi erguida. A tripartição, com a interdependência dos Poderes, é conquista histórica transformada em cláusula pétrea.
Ora, tal principio não se constitui em novidade no universo do direito constitucional. Suas raízes foram lançadas há exatos 270 anos. “O Espirito das Leis”, que consagrou Montesquieu como o grande pensador, e no qual se miraram todos os formuladores constitucionalistas do mundo contemporâneo, diz:
“… não existe liberdade, se o poder judicial não for separado do poder legislativo, do executivo. Se fosse unido ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário; pois o juiz seria legislador. Se ela se juntasse ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor. Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos principais ou dos nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes: o de fazer leis, o de executar as resoluções públicas, e o de julgar os crimes ou as divergências dos indivíduos.”
Esse ponto fora da curva em nosso atual ordenamento institucional vem sendo oportunamente apontado por vários estudiosos. Um dos nossos maiores, Ives Gandra, tem em livros, ensaios e artigos apontado os diversos dispositivos constitucionais alterados pela jurisprudência do STF. Com grande percuciência, o nosso notável jurisconsulto vem chamando atenção para o impasse politico institucional que a atividade proativa do Judiciário pode provocar. Não são poucos os juristas que temem o eventual apelo de qualquer um dos chefes dos outros Poderes ao disposto no caput do artigo 142 da Constituição. E, é evidente, que, nesse horizonte, crise política e social de grande magnitude será instaurada. Neste contexto, de extremado proativismo judicial, não são poucos aqueles que entendem que estamos caminhando, ou mesmo que já vivemos, numa ditadura do Judiciário ou do Poder da toga. Um poder que pretende se sobrepor ao poder do voto de milhões de brasileiros, que constitucionalmente outorga a seus representantes populares o direito de fazer leis. Leis estas que ou são derrogadas ou são substituídas, numa autentica violação do sistema constitucional pátrio. Portanto, desatar previamente esse nó górdio que está se formando, deve se pôr no horizonte das nossas preocupações. Sigamos a Eduardo Couture que lembra ao advogado: “Teu dever é lutar pelo Direito, mas se um dia encontrares o Direito em conflito com a Justiça, luta pela Justiça.” Lutar pela Justiça no campo constitucional e da paz social é exigir que todos os Poderes cumpram seus deveres legais, atuando dentro do estrito limite determinado na Carta Magna.
Os denominados operadores do Direito devem hoje, ao meu modesto modo de ver, lutar para que os fundamentos nos quais se estruturam nossa República sejam mantidos incólumes, até porque a erosão de um só deles pode levar ao soçobramento de todo o edifício jurídico do Estado Democrático. Permitam-me citar aqui um homem que dedicou sua vida e o seu labor intelectual à construção de uma sociedade de homens e mulheres livres. Thomas Paine, doutrina que “O fim de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Estes direitos são: a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão.”.
Senhoras e senhores acadêmicos
A tarefa que se impõe é certamente árdua, mas o dever ético nos exige por igual o seu enfrentamento. Neste sentido, podemos aqui aproveitar para a missão que cabe ao advogado as mesmas palavras incandescentes ditas por Willian Faulkner ao receber o Prêmio Nobel:
Acredito que o homem não irá simplesmente resistir: irá triunfar. Ele é imortal, não por ser a única das criaturas com uma voz inexaurível, mas porque tem alma, um espírito capaz de compaixão, sacrifício e resistência. O dever do escritor é escrever sobre essas coisas. É um privilégio seu ajudar o homem a resistir, elevando o seu coração, lembrando-o da coragem e da honra e da esperança e do orgulho e da compaixão e da piedade e do sacrifício que fizeram a glória de seu passado. A voz do poeta não precisa ser apenas um registro do homem, pode ser também um dos alicerces, um dos pilares para ajudá-lo a resistir e a triunfar.
Referia-se ele ao escritor, ao poeta, mas estas são palavras que muito bem podem ser dirigidas a todo intelectual, entre eles, o cultor do Direito.
É com este ânimo e com esta esperança que adentro a este nobre Sodalício.
Muito obrigado.
Sebastião Carlos Gomes de Carvalho*
*Discurso proferido em 05 deste junho por Sebastião Carlos ao ser empossado na Academia Paulista de Letras Jurídicas (APLJ). Sebastião Carlos é servidor aposentado da Assembleia Legislativa de Mato Grosso, advogado, professor, jurista, historiador, conferencista, presidente da Academia Mato-grossense de Letras e foi vereador por Barra do Garças.
Comentários estão fechados.