Boa Midia

TRANSPORTE – Da logística que temos ao que precisamos

Santarém e as blusas abertas

Santarém e as blusas abertas

Sábado carrancudo do dia 14 de novembro de 1970. Ás águas altas do azul Tapajós empurram o barrento Amazonas. Não se misturam e correm juntas rumo ao mar, mas a cada metro ganham intimidade, cumplicidade e se juntam. Sobre elas, em sentido oposto, os cascos das embarcações carregando militares do recém-criado 8º Batalhão de Engenharia e Construção (8º BEC) e máquinas para a abertura da BR-163. Santarém, isolada na Amazônia e circundada pelo Amazonas e o Tapajós, está no cais, de braços abertos no melhor dos mundos para o santareno. Um orgasmo cívico toma conta da cidade: aquele momento significava o ponto de partida para sua integração ao Brasil, dentro do princípio do Integrar para não Entregar. Meninas órfãs do namoro – havia esvaziamento da juventude masculina que deixava o lugar em busca de emprego e ensino – deliravam e algumas mais ousadas, em grupo, abriram as blusas e tiraram os sutiãs.

Tomo esse fato por empréstimo de Joel Barata, que estava no cais quando os militares desembarcaram em sua cidade. Hoje, as remanescentes das blusas abertas são respeitáveis bisavós sexagenárias ou septuagenárias. Talvez nenhuma delas saiba o simbolismo de seu gesto. Santarém, com seus 303 mil habitantes e suas universidades, se fecha num estranho moralismo numa terra caracterizada pela liberdade sexual e não toca nesse passado.

Busquei o exemplo santareno, por se tratar de uma cidade plenamente identificada com Mato Grosso e principalmente com o setor de transporte mato-grossense, que é o tema desta matéria.

Na região central do continente, Mato Grosso é cercado por todos os lados pela América do Sul. Essa localização cria um fator, que até há alguns anos era complicador para o escoamento das commodities de sua matriz produtiva: o índice de continentalidade, o indicador que mede a distância da lavoura ao porto. A complicação surgia pela falta de infraestrutura de transporte, o que forçava a economia mato-grossense a lançar mão de sua única saída viável para os portos de Santos e Paranaguá: a BR-163, a mesma que levou as moças de Santarém a abrirem as blusas.

O  transporte pela BR-163 rumo Sul aos poucos ganha alternativas regionalizadas e Mato Grosso não tem mais a dependência umbilical do ontem, que o deixava refém daquela rodovia.

Rebocador da Hermasa
Rebocador da Hermasa

Em meados dos 1990 a Hermasa Navegação da Amazônia, empresa controlada pela família Maggi do ex-governador Blairo Maggi, passou a escoar parte da produção do Chapadão do Parecis pela Hidrovia Madeira-Amazonas, de Porto Velho a Itacoatiara (AM). O transporte fluvial é alimentado por um modal rodoviário que tem por referência de partida a cidade de Sapezal, num trajeto médio de 800 quilômetros pela BR-364.

Também no mesmo período em que a Hermasa entrou em atividade Mato Grosso criou duas rotas Norte para sua produção voltada ao mercado internacional e ao Nordeste. Com essa opção a economia tratou de batizar essa alternativa portuária como Arco Norte.

1 – O porto da Cargill em Santarém, alimentado pela BR-163, à época quase totalmente sem pavimentação no Pará, e também por barcaças que navegam a mesma rota da Hermasa, mas que prosseguem até Santarém. Essa rota permanece, mas ganhou alternativa.  O mercado internacional opera no porto de Miritituba, que é uma vila de Itaituba; esse porto fica no trecho permanentemente navegável do rio Tapajós – no chamado Baixo Tapajós.

2 – A rodovia BR-158, no Vale do Araguaia, que passou a escoar grãos e plumas para portos no Maranhão e Pará, com alternativas rodoviárias ou via Tocantins ou via Pará. À época, a 158 também enfrentava falta de pavimentação. Atualmente tem 140 quilômetros sem asfalto no trecho que cruza a recém-instalada reserva indígena Marãiwatsédé, dos xavantes.

Em 2009,  o trem oriundo de Santos apitou em Alto Taquari, depois em Alto Araguaia e Itiquira, e finalmente, em 2012 chegou a Rondonópolis, onde a empresa Rumo opera o maior terminal de cargas agrícolas da América latina.

Inauguração da BR-163
Inauguração da BR-163

EPOPEIA – No começo dos anos 1970, enquanto o 8º BEC avançava rumo Sul rasgando a BR-163, em direção oposta seguia o 9º BEC, de Cuiabá, comandado pelo coronel José Meirelles.

Em 1976 o presidente Ernesto Geisel, governadores e ministro inauguraram a BR-163, em Cacheira do Curuá, área sob tutela paraense, mas disputada pelos dois estados. No Pará, essa rodovia é chamada de Santarém-Cuiabá, e em Mato Grosso, de Cuiabá-Santarém. Sua extensão no trecho com essa nomenclatura é de 1.770 quilômetros, com um trecho coincidente com a rodovia Transamazônica.

No governo do presidente João Figueiredo a BR-163 foi pavimentada no trajeto de 610 quilômetros, do Trevo do Lagarto, região metropolitana de Cuiabá a Nova Santa Helena. Em Mato Grosso a pavimentação foi concluída, mas ainda há um trecho paraense encascalhado.

BOLÍVIA – Mato Grosso tem uma fronteira com 983 quilômetros com a Bolívia, país com o qual sustenta um mercado formiguinha, mas sem volume importante de exportação ou importação.  A economia mato-grossense defende a consolidação do Corredor Bioceânico, que tem dois gargalos: a transposição da Cordilheira dos Andes, e um trecho sem pavimentação naquele país.

Mais logística

 

 

Guarantã do Norte
Guarantã do Norte

Paralela ao Tapajós e a BR-163, está prevista a construção da Ferrogrão, ferrovia que ligará o Nortão a Miritituba e será estratégica para o escoamento regionalizado da grande produção agrícola de Sorriso, Lucas do Rio Verde, Nova Mutum, Santa Rita do Trivelato, Nova Ubiratã, Tapurah, Vera, Santa Carmem, Cláudia, Ipiranga do Norte e outras cidades da região, para o Arco Norte.

Há mais de 20 anos o Vale do Araguaia luta por uma ferrovia, mas a obra sempre esbarrava na falta de recursos. Porém, a presidente Dilma Rousseff encontrou uma saída. Dilma articulou a ampliação da outorga pra Vale explorar a Estrada de Ferro Vitória a Minas e a Ferrovia dos Carajás, em troca da construção da Ferrovia de Integração do Centro-Oeste (FICO). A enervante burocracia fez a articulação se arrastar. Dilma caiu, mas seu sucessor, Michel Temer, manteve a proposta. Finalmente, apesar do protesto dos governos dos estados onde as ferrovias da Vale operam, o martelo foi batido. Sobre a FICO é preciso registrar, por questão de justiça, a decisão participação de Carlos Marun, que foi ministro da Secretaria de Governodo presidente Michel Temer, e, que brigou por esse projeto.

Para pagar a outorga a Vale construirá a FICO no trecho de 383 quilômetros entre Água Boa e Mara Rosa (GO), onde se conectará com a Ferrovia Norte-Sul. Essa obra, num cenário de muito otimismo pode ser concluída em menos de três anos.

Mato Grosso tem rios navegáveis, mas somente o Paraguai deverá ser incorporado ao sistema de transporte. A Hidrovia do Mercosul, que tem 3.442 quilometros de extensão entre Cáceres e Nueva Palmira poderá se transformar em importante rota comercial. Esse trecho deverá sofrer pequena redução, pois a meta é deslocar o porto de Cáceres, para Morrinhos, naquele município. Além da construção das instalações portuárias Morrinhos depende da pavimentação de 68 quilômetros da BR-174, para permitir o acesso das carretas transportadoras de commodities para embarque.

 

Cuiabá

 

O trem de Rondonópolis
O trem de Rondonópolis

Há alguns anos criou-se na capital mato-grossense o Fórum Pró-Ferrovia em Cuiabá, movimento que ora hiberna ora se manifesta – principalmente em períodos eleitorais ou próximo deles. Sua meta é estender os trilhos da Rumo até o Nortão e Cáceres, cruzando Cuiabá.

A possibilidade de escoamento da produção agrícola e mineral de modo regionalizado não passa pela inclusão de Cuiabá, cidade numa região sem produção no entorno, sem indústrias pesadas e que não tem cargas para embarque.

Cidade prestadora de serviços públicos, Cuiabá não tem bom parque industrial e há muitos anos não recebe nenhuma indústria de porte. Investimento em ferrovia não é movido por bairrismo nem paixão: tudo é feito dentro da razoabilidade comercial.

O trem que Cuiabá sonhou no passado não mais existe. Desde Esperidião Costa Marques, que defendeu a ligação ferroviária de Cuiabá com Santos, passando pela escritora Maria Dimpina Lobo Duarte com seus artigos inflamados e pelo deputado federal Vicente Vuolo – que apresentou um projeto transformado em lei, pra que o trem apitasse no centro geodésico do Brasil, o transporte ferroviário mudou por completo. O trem cargueiro e postal do ontem foi substituído por composições que transportam no macro, que exigem volume de cargas.

O que se espera

 

Navio da Marinha no rio Paraguai, em Cáceres
Navio da Marinha no rio Paraguai, em Cáceres

O ideal para melhorar a logística de transporte mato-grossense é a operacionalização da Hidrovia do Mercosul. A construção da FICO na extensão ora proposta e o avanço de seus trilhos para Gaúcha do Norte, Nova Ubiratã e Lucas do Rio Verde. A  conclusão da duplicação da BR-163/364 da divisa com Mato Grosso do Sul a Guarantã do Norte. A pavimentação da BR-158 na área indígena Marãiwatsédé. E a criação de uma malha rodoviária pavimentada alimentadora dos grandes modais.

Eduardo Gomes – blogdoeduardogomes

FOTOS:

1 – José Medeiros

2 e 4 –blogdoeduardogomes

3 – 9º BEC

5 – Cairo Lustosa

6 – Gilvair Gomes Gracioso

1 comentário
  1. Roseli Diz

    Brigadeiro você arrebenta
    Roseli

Comentários estão fechados.

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