Profeta e poeta II

Eu morrerei em pé, como as árvores
Me matarão em pé. O sol, testemunha maior, imprimirá seu lacre
sobre meu corpo duplamente ungido. De golpe, com a morte
se fará verdade a minha vida
Por fim, terei amado!

 

Profecia Extrema

Quiçá possa aqui novamente repetir a expressão de Ortega y Gasset grafada no introito de Meditaciones del Quijote (1914) segundo o qual “Eu sou eu e minha circunstância, e se não salvo a ela, não me salvo a mim”, desta vez a propósito de Pedro Casàldaliga. Para Gasset, o homem, embora distinto da realidade em que vive, dela não obstante está indissociável. Esta é, sem duvida, uma formidável síntese filosófica desse madrilenho, que é considerado um dos maiores filósofos espanhóis do século XX. E foi deste modo – vivendo e sendo a sua circunstancia – que esteve o catalão às margens do Araguaia, no sertão ínvio e de realidades brutais. Envolvido com os discriminados e desterrados pretendeu salvar as circunstancias, para salvar-se a si também. O envolvimento ético foi o mais profundo possível. Subordinou a melhoria da condição humana circundante para, com sua ação, conquistar a salvação de sua própria circunstancia de clero e de homem. Realizou assim um engajamento totalizante: a ideia (a crença) vivida ao extremo da existência, num posicionamento, em seu caso, de conotação metafísica, mística, transcendente.

Aos quarenta anos o cura catalão chega ao sertão setentrional no momento em que o governo central começa a lançar, em grande escala, os programas de estímulo à ocupação do espaço amazônico. É a época em que a Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia – SUDAM e o seu braço financeiro, o Banco da Amazônia – BASA, além da SUDECO – Superintendência de Desenvolvimento do Centro Oeste e também o Banco do Brasil, oferecem linhas de créditos de recursos vultosos e com planos de pagamento, de juros e prazos, amplamente acessíveis. O fluxo migratório, basicamente de sulistas, é desencadeado como nunca antes no país. A pecuária e a agricultura extensiva ganham incremento significativo e provocam forte impacto social. Assim, pequenos agricultores e criadores, ocupantes de terras na região desde fins do século XIX, a imensa maioria sem títulos de propriedade cartorial, os denominados “posseiros”, são acossados e forçados, em muitas ocasiões pela violência, a deixarem suas terras ancestrais. Como párias vagam pelas currutelas e pequenas localidades que logo incham, ocupadas que são por uma população empobrecida e miserável. É nesse cenário dramático que o padre espanhol, recém chegado ao país, também ele filho de camponeses, passa a (com) viver.

O solo calcinado, muitas vezes tisnado de sangue, onde se dá o encontro do cerrado e da floresta pré-amazônica, e margeado pelas águas solenes do Araguaia, também ele já sofrendo o impacto terrível da destruição das matas ciliares, do assoreamento e da impiedosa poluição garimpeira, é que Casàldaliga irá palmilhar pelos próximos cinquenta anos. Nesse espaço construirá a sua história de vida e escreverá a história do povo, da geografia, da fauna e da flora. Será um espaço de combate, de denuncia, de vivência intensa. E o fará ora como sociólogo e historiador, ora como poeta. Mas sempre com indormida bravura. Em 1970 publica “Escravidão e Feudalismo no norte de Mato Grosso”, o primeiro dos vários textos que escreveria sobre a região ao longo de cinco décadas. “A injustiça tem um nome nesta terra: latifúndio. E o único nome certo do desenvolvimento aqui é a reforma agrária” – não se cansa de dizer.

Em 27 de agosto de 1971, Paulo VI o nomeia bispo de São Félix do Araguaia. Com a presença de vários prelados, a cerimônia acontece à beira do Araguaia. A mitra e o báculo são substituídos por um chapéu de palha e o anel é de tucum (palmeira amazônica), que lhe presenteia os índios tapirapés. Solenemente anunciaria seu compromisso episcopal. Citando o Cardeal Marty, arcebispo de Paris, proclama: “Se ‘a primeira missão do bispo é a de ser profeta’, e o profeta é a voz daqueles que não têm voz (card. Marty), eu não poderia, honestamente, ficar de boca calada ao receber a plenitude do serviço sacerdotal”.

Em outubro desse ano o novo prelado divulga a Carta Pastoral “Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social”, que se tornaria um libelo acusatório contra o sistema de exploração econômica que estava sendo implantado na região amazônica. Esse documento, apesar da censura, alcançaria ampla repercussão no Brasil e no exterior. Foi o primeiro a denunciar a expulsão de índios e camponeses de suas terras, a crescente marginalização social, a existência do trabalho escravo de famílias inteiras, o empobrecimento generalizado de grande parte da população, a violência policial, a atuação criminosa dos grileiros, garimpeiros e madeireiros, a acelerada concentração da riqueza, a impiedosa destruição da natureza. Essa denuncia ganhou o mundo e tornou Pedro Casàldaliga um nome nacionalmente conhecido, enquanto que os latifundiários o transformariam em inimigo numero um e o regime militar o colocou definitivamente no radar dos serviços de segurança. Paralelamente, seria uma das principais vítimas da censura e se tornaria um homem marcado para morrer ou para ser expulso do país.

Com a Pastoral o bispo araguaíno dava inicio à longa jornada de fustigamento dos poderosos e de destemida e acérrima critica as raízes da injustiça social. Aos poucos se tornaria um ícone da resistência pacifica contra a ditadura militar. A pressão sobre ele só viria a ser aliviada com a redemocratização. No entanto, surgia um novo obstáculo. A ascensão do polonês João Paulo II, vigoroso opositor das ideias contidas na Teologia da Libertação, iria colocar Casàldaliga contra a parede. Só não foi punido porque, mais de uma vez, houve a vigorosa intervenção da CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, e do bravo cardeal Arns à frente.

A poesia foi um dos instrumentos para essa luta sem tréguas. Do espaço geográfico emergia os ingredientes de uma inspiração nascida da dor, mas igualmente de um novo horizonte que forcejou para nascer e, até então, desconhecido. Ao falar do homem dos sertões, do Araguaia, da floresta e do cerrado Casàldaliga falava dos desterrados do mundo.

Ainda uma vez, para alegria minha, estivemos juntos nesse mister. Em 1989, no exercício da presidência da Fundação Cultural de Mato Grosso, produzi e publiquei a Coleção Poetas Mato-Grossenses. Editei seis livros, de seis poetas. E entre estes estava o Águas do Tempo. Vale dizer: este é o primeiro e o único livro de poesias de Pedro Casàldaliga publicado em Mato Grosso.

A sua poesia límpida, direta, afiada, telúrica, reúne combate e reflexão, encarnando, numa simbiose aparentemente paradoxal, o pragmatismo imperativo e a espiritualidade profunda. Esse nexo simbiótico, contudo, transcende a circunscrição geográfica em que vivia. O espaço não permite, fica, pois para um estudo de fôlego, mas vejamos esta pequena mostra publicada em Águas do Tempo:

 

SEBASTIÃO CARLOS GOMES DE CARVALHO é advogado e historiador. Membro do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso e do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, entre outras instituições culturais

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