Milico boca dura (***)

Depois da presepada de Ivo de Almeida na FMD, Bonilha Filho ficou um bom tempo sem vice-presidente e, consequentemente, o Departamento Técnico sem diretor. Um dia, Bonilha Filho foi a uma sole¬nidade oficial, que naqueles tempos de vacas gordas, por mais simples que fossem, eram regadas a filezinho de pintado a palito com molho tártaro e refri¬gerante, e conheceu o capitão do Exército Silvério Mendes.
Conversa vai, conversa vem, e Bonilha Filho descobriu que o capitão gostava de futebol. E não perdeu tempo: convidou-o para ser seu vice e diretor do Departamento Técnico. “Vou consultar meu superior. Se ele autorizar, acei-to o convite” – foi a resposta de Silvério Mendes.

 

Duas semanas depois, o capitão assumia as duas funções na FMD. Silvério Mendes chegou para a solenidade de posse acompanhado de uns seis cabos e sargentos que mais pareciam seguranças de boates, com porte de atleta e cara de gente braba. Ao falar antes de assinar a ata de posse, Silvério Mendes deu um recado muito direto: “Esse pessoal me acompanha onde eu estiver. E todos eles estão comigo para o que der e vier…” – arrematou o militar.

Como para quem sabe ler um risco é francisco, deixava claro o militar que cenas como aquela da qual Ivo Almeida tinha sido o principal prota¬gonista não iam se repetir mais no Departamento Técnico. Nem precisava falar nada, pois naqueles tempos da ditadura sanguinária do general-presidente Emílio Garrastazu Médici ninguém queria saber de se meter em encrencas com milicos.

O autor

Pouco tempo depois de assumir o Departamento Técnico, o capitão Silvério Mendes fez uma descoberta interessante: em dias de jogos, o Dutrinha ficava sempre lotado – sua capacidade era para 7 mil torcedores – mas dinheiro que era bom nos cofres da FMD, necas. E foi fácil descobrir por que: ninguém pagava ingresso.
Desembargador, juiz, promotor, procurador, deputado, policial, dirigeentes de clubes, de ligas, de associações esportivas, dono de rinha de briga de galo, presidente de quermesse de bairro – quem tinha qualquer carteirinha, mesmo que não fosse identidade funcional – era só apresentar na portaria e ir entrando. O capitão Silvério Mendes, com o apoio do presidente Bonilha Filho, decidiu acabar com a farra.
Como não podia ser diferente, o valente capitão arrumou confusão de tudo quanto foi jeito. Era cada bate-boca na portaria do Dutrinha!…

– Mas eu sou o desembargador…

– Eu sou o capitão Silvério… só entra se comprar ingresso…

– Eu sou o deputado… olhe aqui minha identidade…

– Eu sou o capitão… compre logo o ingresso que o jogo já vai começar…

Bater boca com o capitão Silvério, até que muita gente ousava, mas sair no braço com o militar não passava pela cabeça de ninguém. Também com aquele punhado de cabos e sargentos que estavam sempre ao seu lado…

Certa tarde de um grande clássico do futebol mato-grossense, Bonilha Filho ficou disfarçadamente pela portaria do Dutrinha para ver como o capitão Silvério enfrentava os penetras de todos os níveis sociais que estavam acostumados a não pagar ingresso.

Lá pelas tantas, chegou um senhor usando short e chinelos e puxando uma criança de uns cinco anos pela mão. Tirou a credencial do bolso e mostrou ao porteiro.

– Só entra pagando ingresso – antecipou-se o capitão Silvério ao porteiro.

– Aqui minha credencial. Sou delegado de Polícia e estou de serviço…

– De serviço, de short e chinelos e ainda com uma criança… tenha paciência, rapaz! – rebateu o capitão.

Bateram boca adoidado. Bonilha se disfarçava como podia para que o delegado não o visse por ali e pedisse sua intervenção para permitir sua entrada no estádio.

Depois de muito pega-pra-capá, o inconformado delegado foi embora. Passados uns 40 minutos, o delegado retornou ao Dutrinha com quatro viaturas cheias de policiais militares devidamente uniformizados e ele usando traje normal.

– Entrem e fiquem do lado esquerdo da arquibancada, onde está a torcida do Mixto, que é muito encrenqueira – ordenou o capitão Silvério – sem exigir que o único civil da tropinha, o delegado de Polícia, mostrasse a identidade funcional…

O policiamento não ficou nem 20 minutos no Dutrinha. Um a um os soldados foram saindo do estádio. O delegado ficou e assistiu o jogo de graça. Pelo menos naquele dia… (Continua***).

Reproduzido do livro Casos de todos os tempos Folclore do futebol de Mato Grosso, do jornalista e professor de Educação Física Nelson Severino