Jarudore é um importante distrito de Poxoréu e desde 2006 enfrenta ameaça de desintrusão pedida pela Funai e o Ministério Público Federal (MPF), para transformá-lo numa reserva indígena dos bororos. A população vive assustada com o cenário, que esteve a um passo de se concretizar, quando em 24 de setembro deste ano o vice-presidente e presidente em exercício do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em Brasília, desembargador federal Kassio Nunes Marques, acatou a fundamentação da Prefeitura de Poxoréu questionando uma liminar do juiz da 1ª Vara Federal de Rondonópolis, Victor de Carvalho Barbosa Albuquerque, que determinava a retirada dos moradores. A decisão do desembargador federal foi importante vitória, mas a luta continua, liderada pela jarudorense Carlos Antônio do Carmo, o Mineiro, com apoio do prefeito Nelson Paim; o vice-prefeito Marlon Cesar Silva de Moraes; a Câmara, liderada pelo presidente Aguinaldo Batata, que reside em Jarudore; e parlamentares federais e estaduais.
Em meio à pandemia e ao complexo da morosidade judicial, as duas partes na questão aguardam para iniciarem discussões temáticas sobre o tema, com a participação de representantes do governo federal, Funai, MPF, autoridades municipais, posseiros e outros interessados. Enquanto isso a população respira esperançosa.
Jarudore é formado há 74 anos por uma população de sitiantes, pequenos fazendeiros, comerciantes, professores, mecânicos, peões, donas de casa, aposentados, estudantes, servidores públicos, motoristas, tratoristas São 1.650 brasileiros, que vivem mansa e pacificamente numa área de 4.706 hectares que foi habitada por seus ancestrais, como parte da política oficial de ocupação do vazio demográfico do Brasil interior.
(Entendam o caso)
Cronologia de Jarudore
1926 – O Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon constrói uma estação telegráfica à margem do rio Vermelho.
1945 – Mato Grosso cria a vila de Jarudore ao lado da estação telegráfica. Naquele mesmo ano, atendendo pedido do Marechal Rondon, o Estado destina aos bororos uma área de 4.791,33 hectares (corrigida para 4.706 hectares) desmembrada de outra, do Estado, pelo Decreto 664, de 18 de agosto, baixado pelo interventor federal Júlio Müller.
Rondon era estrategista e defendia os índios. Ao pedir a terra para eles, queria assegurar que os mesmos tivessem um ponto de apoio – ao lado do telégrafo – para sua viagens embarcadas pelo rio Vermelho (que eles chamam de Poguba) entre as suas reservas nas chamadas terras altas e suas aldeias no Pantanal.
1947 – Em 26 de junho, o governador Arnaldo Estevão de Figueiredo cria a Escola Estadual Franklin Cassiano da Silva, em Jarudore, como parte da política de instalação de escolas em pontos estratégicos na região de Rondonópolis, para assegurar educação aos filhos dos colonos pioneiros que ocupavam o vazio demográfico nas calhas dos rios São Lourenço e Vermelho. Essa escola é uma das referências do lugar.
1958 – Em 20 de agosto O Cartório do Registro de Imóveis da Comarca de Poxoréu averba a matrícula 3.547 da área de Jarudore para a Funai.
Em 25 de dezembro o governador João Ponce de Arruda sanciona a Lei 1.191 criando o Distrito de Paz de Jarudore no município de Poxoréu, com base num projeto de lei do deputado Mário Spinelli (PSP) aprovado pela Assembleia Legislativa.
1973 – Somente o capitão bororo Henrique, a mulher dele, dona Ana, e a filha do casal e professora no distrito, Maria, residem em Jarudore. Os demais de sua etnia abandonaram Jarudore e mudaram para a reserva Sangradouro/Volta Grande. “Capitão” era designação de cacique.
1978 – Bororos levam o capitão Henrique e seus familiares para a reserva Sangradouro/Volta Grande. Com a saída da família, a área onde viviam é ocupada pelo capitão José Luiz Quearuvare – também grafado Kiaruvare. Naquele ano o capitão José Luiz deixa Jarudore.
2006 – Em 22 de junho a cacique Maria Aparecida Tore Ekureudo, da reserva Sangradouro/Volta Grande chega a Jarudore à frente de um grupo de 32 bororos, ocupa um sítio distante 7 quilômetros da área urbana e cujo posseiro é estranho aos moradores, e fixa o cartaz: “Área Indígena Aldeia Nova Bororos”.
No dia 25 de junho o procurador da República em Mato Grosso, Mário Lúcio Avelar, e o procurador Federal Cezar Augusto Lima Nascimento, representando a Funai, ingressam com uma Ação Civil Pública com pedido de liminar de antecipação de tutela específica, ao juiz da 3ª Vara da Justiça Federal em Cuiabá, César Augusto Bearsi, pela reintegração de Jarudore aos bororos. Até então os bororos não habitavam aquela área. Posteriormente, com a criação da Justiça Federal em Rondonópolis, a ação passou a tramitar na 1ª Vara daquela cidade.
Quem descobriu o sítio desocupado temporariamente que em seguida seria ocupado pelos bororos foi João Osmar Lopes, o Gaúcho, genro da cacique Maria Aparecida. Gaúcho trabalhava numa linha de leite e conhecia bem a região.
Desde a chegada dos bororos Jarudore passou a enfrentar problemas de diversas naturezas.
2019 – Em 25 de junho o juiz da 1ª Vara Federal de Rondonópolis, Victor de Carvalho Barbosa Albuquerque, determinou a desintrusão de duas regiões do distrito de Jarudore. A decisão é algo semelhante ao fatiamento social do lugar. O primeiro, 45 dias após a publicação de sua decisão, e o segundo, 45 dias depois.
A primeira desintrusão seria sobre uma área de 1.930 hectares. Um mês e meio depois – tendo o mesmo marco temporal – os que residem numa região com 1.730 hectares fariam o mesmo. Cumpridas as duas desintrusões restariam 1.046 hectares que compreendem a vila de Jarudore e seu entorno.
Esse fatiamento prepararia o terceiro e último, sobre a região urbana. Assim, sem atingir todos de uma só vez, adotando a sutileza de operações menores, com menos impacto perante a opinião pública, a população do lugar será expulsa de suas casas, para bem longe de suas lavouras, suas hortas, suas vacas leiteiras.
Em 24 de setembro o vice-presidente e presidente em exercício do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em Brasília, desembargador federal Kassio Nunes Marques, acatou a fundamentação da Prefeitura de Poxoréu questionando a liminar do juiz da 1ª Vara Federal de Rondonópolis, Victor de Carvalho Barbosa Albuquerque, que determinava a retirada dos moradores.
A ação tramita.
Solução
Jarudore é antropizada e ocupada mansa e pacificamente há 74 anos. Uma composição satisfatória para todos seria o Estado adquirir uma área igual ou maior ao distrito, e anexa a uma das reservas dos bororos, e lhes dar em compensação por aquela onde efetivamente nunca foram aldeados. Para que isso aconteça seria necessário uma costura política e amparo da União em seu sentido mais amplo.
Gente de Jarudore
Da Boa Terra pra terra boa em Jarudore
Seca que parecia não ter fim. A terra esturricada pela inclemência do Sol não produzia e o garoto Otávio cortava palma de gado – cacto sertanejo – para manter em pé as vaquinhas curraleiras no sítio de sua família em São Desidério, no Oeste baiano.
A labuta era pesada e incessante. A família de Otávio juntou-se a outras da vizinhança fretando um pau-de-arara para tirá-los da aridez e levá-las a um canto de Mato Grosso que sequer aparecia nos mapas: Poxoréu.
Assim, aos 11 anos o pequeno Otávio virou retirante da seca nordestina. Sessenta e oito baianos de todas as idades – 14 crianças – e de vários sobrenomes pegaram a estrada empoeirada e que parecia sem fim.
O possante freou pela última vez na longa jornada pelo interior do Brasil. De sua carroceria desceram primeiro os homens. Uma escada na parte traseira facilitou o desembarque das mulheres e crianças. Os paus de arara olhavam curiosos e ressabiados o vaivém da cidade que fervilhava com o garimpo da pedra mais cobiçada do mundo.
O menino Otávio viu alguns guris com varas de pescaria passando perto do caminhão estacionado. Achou aquilo diferente. Curioso, saiu de mansinho do grupo de baianos. Observou a criançada pescar nas águas barrentas do rio que empresta o nome à cidade. “Peixe; vige, isso é peixe, ôxente!”, gritou quase inconscientemente o baianinho pouco acostumado com água corrente. Os pequenos pescadores não gostaram da reação do estranho. Caras feias o fizeram voltar depressa ao seu grupo.
Escureceu e os paus-de-arara procuraram suas redes para a última noite no caminhão. Ao invés do movimento diminuir com a escuridão das ruas mal iluminadas, o vaivém aumentou, mas com um detalhe: não se via mulheres; apenas os homens caminhavam e a maioria tinha destino comum: a zona boêmia mais famosa de Mato Grosso à época, a Rua Bahia, repleta de cabarés com mulherio de cair o queixo e onde os garimpeiros que bamburravam lavavam o chão com cerveja Brahma de casco escuro.
O calmo Oeste baiano cedeu lugar ao burburinho de Poxoréu. Do caminhão se ouvia o som das eletrolas dos cabarés, que inundavam a noite alternando o bolerão Bésame Mucho, da mexicana Consuelo Velázquez, com o modão Mula Preta, de Raul Torres. A barulheira não tirou o sono do pequeno Otávio, que acomodado numa rede armada ao lado de outras na carroceria se deixou vencer pelo cansaço da longa viagem, pela emoção da descoberta da pesca e pelo fascínio com a terra mato-grossense.
Amanhece em Poxoréu e Otávio se encanta com o azul do céu, o barulho das águas do rio e com a revoada barulhenta das araras e outros pássaros. O grupo baiano é disperso. Parte vai para fazendas na vila de Paraíso do Leste. Os solteiros pegam o rumo dos garimpos de diamante em Alto Coité, Raizinha e sabe-se lá Deus mais onde. Algumas famílias esperam a vez de embarcar numa picape Willys para Jarudore.
Com o topete arrepiado pelo vento, Otávio desembarcou da carroceria da picape em Jarudore, de onde nunca mais saiu. No dia seguinte, sua mãe o matriculou na Escola Estadual Franklin Cassiano da Silva, para concluir o aprendizado do abecedário e aprender a fazer as quatro operações.
– Otávio – responde.
– Tem batistério ou certidão de nascimento?
– ‘Tá’ aqui – colabora a mãe, com a papelada nas mãos.
– Seu nome não é Otávio!
– Não, senhora! É Otaviano Francisco Vieira. Otávio é apelido – explica tímido olhando para o piso de chão batido da escola.
O apelido continua. Seo Otávio se casou com dona Joselice no Cartório de Paz de Jarudore. O casal tem duas filhas: Maria de Fátima e Elizete, ambas nascidas em Jarudore, e a exemplo do pai, ex-alunas da Escola Franklin Cassiano da Silva.
Sem fronteira
Desde pequeno seo Otávio lida com gado e na juventude comprou seu primeiro sítio, mas não é posseiro rural em Jarudore. Sua terra se localiza fora dos limites daquele distrito de Poxoréu. No entanto, sua casa é ali, bem no centro, na pavimentada avenida Manoel Cândido de Oliveira. “Aqui é meu ninho”. É assim que se refere ao lar onde mora há mais de 46 anos.
Em Jarudore é assim. Parte da comunidade mora na vila e tem propriedades fora do distrito. Outros são pequenos agropecuaristas, comerciantes, prestadores de serviços, funcionários públicos, estudantes e aposentados residentes e estabelecidos naquela localidade “É assim, porque em Mato Grosso é assim, no Brasil é assim, pois não há isolamento de regiões em país livre”, observa seo Otávio.
JARUDORE – Seo Otávio é um dos exemplos da formação social de Jarudore, distrito com área de 4.706 hectares.
Eduardo Gomes – blogdoeduardogomes
FOTOS:
1 – Mineiro
2 e 3 – Marcos Negrini