Eduardo Gomes
@andradeeduardogomes
Montadora de automóveis não tem pátria; somente interesses. Se uma praça deixa de oferecer lucratividade, já era. Foi assim, no passado, com a DKW-Vemag, com a Simca do impagável Chambord – símbolo de uma época. Em 2021 foi a vez da Ford dizer adeus. Com certeza não faltarão os que debitarão a saída ao ex-presidente Jair Bolsonaro. Também sobrarão matérias detalhando a presença de suas indústrias entre nós, e pode ser que até alguém escreva sobre o projeto Fordlândia, de Henry Ford, nas barrancas do Tapajós, entre Itaituba e Santarém. Quem sabe algum saudosista diga que o presidente Juscelino Kubitschek se desmanchava pela marca em razão do vaivém de seus possantes F-600 entre o eixo Rio-São Paulo e Brasília, transportando os armários da burocracia palaciana para a Capital da Esperança e materiais de construção, e carregando candangos e seus sonhos.
Não saberia escreveria sobre a Ford no Brasil. Modestamente tocarei no F-600 o caminhão pioneiro no Brasil. Sim, aquele possante e de estilo avançado para a época, que era movido por 16 cilindros (oito pra ida e igual tanto pra volta), potência essa que o tornava beberrão da velha e boa gasolina de alta octanágem, com cheiro forte – coisa que os mais novos desconhecem.
Para o F-600 não havia limite de peso, mesmo sendo toco. Tanto fazia uma carga com 6, 9 ou 11 toneladas. Enquanto os pneus aguentassem, seu motor V-8 transportava subindo com desenvoltura e deixando carro de passeio e de praça tomando poeira da estrada. Bons tempos!
A Ford ganhou o Brasil com seus caminhões e mais tornou com suas camionetes muito avançadas, fortes, boas no barro e que subiam até em pau-de-sebo – como se dizia – mas que também não economizavam gasolina a exemplo do F-600 beberrão.
A paixão do brasileiro pelo F-600 era bigamia pura, pois ele também se desmanchava pelo Chevrolet Marta Rocha, fabricado pela GM e assim batizado pela sabedoria popular em homenagem a uma baianinha arrasa-quarteirão, chamada Martha Rocha, que em 1954 foi eleita a primeira Miss Brasil e que somente não ganhou o cetro da beleza mundial, por inveja do júri americano, que por bairrismo escolheu a compatriota Miriam Stevenson, que não era de se jogar fora, mas que não chegava aos pés da moreninha da Boa Terra.
Havia uma competição saudável entre as duas montadoras. cada uma caprichando mais em seus modelos. A Ford por várias vezes mexeu na lataria do F-600, mas nunca atropelou profundamente seu designer de seu possante.
Bons ventos sopravam para a Ford no Brasil, até que estourou a Crise do Petróleo e tudo mudou.
Em 6 de outubro de 1973, egípcios e sírios atacaram Israel. Era o feriado do Dia do Perdão – em hebraico, Yom Kippur. Em razão da data, a comunidade internacional deu àquele conflito o nome de Guerra do Yom Kippur. Derrotados, os árabes se vingaram economicamente elevando o preço do barril do petróleo absurdamente, por meio da Opep – a organização dos países petrolíferos, por eles controlada.
Os canhões, os aviões, os tanques e blindados dispararam no Oriente Médio e atingiram a espinha dorsal brasileira em cheio, por sermos um país rodoviário. A gasolina ficou impraticável para os caminhões. Ford e Chevrolet, que já ensaiavam a motorização a diesel de seus pesados, lançaram mãos para valer nos motores diesel. A primeira apostou alto no Perkins. A outra se deixou seduzir pelo Cummins, que já fazia sucesso por aqui com suas versões marítimas e estacionárias, e também pelo Detroid. Ambas as montadoras não tiveram sucesso nessa investida.
Pela manhã, se o clima estivesse ameno – não digo frio, porque isso é raridade em Mato Grosso – o danado do Perkings não pegava na partida nem com reza braba. A saída, invariavelmente era encostar as traseiras de dois caminhões, para o tranco. O benemérito era sempre um Mercedes Benz, e o assistido, o próprio ou imprório Perkins.
A Ford perdia espaço para a Mercedes. Seu marketing criou o slogan que saía de fábrica no para-choque dianteiro de seus caminhões, com um espaço no centro, para o emplacamento: Pense forte (placa) Pense Ford. A montadora de origem alemã retrucou inteligentemente: O que é bom já nasce diesel
Mercedes à parte, nos bons tempos da gasolina havia uma disputa cerrada entre motoristas da Ford e Chevrolet. Com fama de corredor, quase sempre o caminhão da primeira marca estampava no para-choque traseiro: Vitamina de Chevrolet é poeira de Ford.
Mato Grosso também foi reino do F-600, que foi a primeira viatura de carroceria do Corpo de Bombeiros Militar, quando o mesmo era integrante da Polícia Militar (PM). Em Cáceres o 2º Batalhão de Fronteira do Exército o utilizava para transporte de mudanças do pessoal lotado nos destacamentos militares de Santa Rita, Descalvado, Palmarito e os demais na faixa de fronteira. O Choque da PM chegava aos locais das ocorrências no famoso caminhão da Ford.
Famílias de várias partes do Brasil vieram para Mato Grosso participar do processo de ocupação do vazio demográfico amazônico em paus de arara F-600. Colonizadoras e madeireiras não abriam mão do bom caminhão da fábrica de Henry Ford.
Em 1976, quando o F-600 era página virada na linha de produção, substituído por uma gama de modelos movidos a diesel, o mesmo continuava em cena Brasil afora. Em Nova Brasilândia, então chamada de Fica Faca, estava em ritmo de colonização uma gleba do empresário Lindomar Bett, de Jaciara. A região pertencia ao município de Chapada dos Guimarães. Sua topografia acidentada e o solo permeado por pedras não desaminaram centenas de produtores rurais que ali se estabeleceram iniciando o cultivo de arroz e feijão.
Aqui, o F-600 Zé Grandão
Fica Faca virou uma das referências nacionais no cultivo do feijão. Compradores de todos os cantos apareciam ao volante de seus Mercedes, prontos para a compra e embarque imediato, porque o feijão é um produto de preço volúvel e muito arriscado. Os Mercedes não conseguiam vencer as serras da região e esse serviço era feito por F-600 fretados. Não se falava em saca, mas em volumes. Frieira, Vinagre, Sobe Tudo e outras regiões somente eram alcançadas pelos caminhões da Ford, que uma vez carregados, além das subidas ainda enfrentavam travessias de córregos e rios, como é o caso do Finca Faca, afluente do Manso, e que na área corre num vale profundo, com topes em suas margens.
Enquanto os F-600 faziam sua parte, os motoristas dos Mercedes permaneciam na rua (a vila), com seus caminhões estacionados no posto do Juari Benedito de Campos, e se alimentando nos hotéis e restaurantes de Oswaldo Fidélis e Dari Esteves Vicente. Num corre-corre sem fim os comerciantes de cereais Divino Ivo Rocha, chamado de Divino Fogoió, e Mineiro da Peruca, faziam das tripas coração para fecharem mais vendas de cargas de feijão. À noite, enquanto os caminhões Ford pegavam no pesado, os compradores à espera do produto tomavam geladas no Bar Chapéu de Palha, do Arnaldo Ivo de Freitas, o Nadinho, e se esbaldavam com as morenas no cabaré Casa Redonda, do Zé Branco.
À época do feijão em Nova Brasilândia, então dita Fica Faca, os F-600 eram onipresentes em Mato Grosso. Rainha do Algodão cultivado em roças de toco, Rondonópolis convivia com esses caminhões, que a atravessavam abarrotados com fardos para o armazém do Medeirão, na Caixa D’Água, de onde onde eram transportados para a indústria. Em Cáceres, eles estavam presentes na abertura das glebas. No Araguaia e Nortão eram ferramentas vitais ao processo de colonização em curso.
A evolução da indústria automobilística nos levou o F-600. O mercado internacional agora nos leva seu antigo fabricante. Fica a saudade. É preciso entender as mudanças que o mundo nos cobra.
Belo texto, nostalgia e história
Agrônomo Omar Pichetti – Água Boa – via WhatsApp
Brigadeiro arrasou neste texto
Márcia Lima – via WhatsApp – Rondonópolis
Nostalgia pura!