Mato Grosso, desde os primórdios de sua colonização enfrentou isolamento. Sua verdadeira integração ao conjunto nacional aconteceu graças a uma dupla que está presente no mundo inteiro: o caminhão e o motorista. Sua primeira cidade que se integrou ao país por via terrestre foi Guiratinga, graças ao pioneiro do transporte rodoviário de cargas mato-grossense, Nêgo Amâncio – um herói esquecido pela classe política.
Ler sobre Nêgo Amâncio é beber o sabor histórico de uma das belas páginas do desenvolvimento mato-grossense. O texto que se segue foi extraído do LIVRO 44 publicado em Cuiabá, no ano de 2014, pelo jornalista Eduardo Gomes de Andrade sem apoio das leis de incentivos culturais.
Nego Amâncio, o homem que quebrou o isolamento de Guiratinga e região
Comi muita poeira dos caminhões do Nêgo Amâncio. Seus motoristas conheciam as estradas de Mato Grosso como a palma da mão e não alisavam ao volante, como se dizia à época: “Atola o pé, chofer, que trucão é Chevrolet”.
Nêgo Amâncio tinha caminhões Chevrolet C-65, trucados, com motor Perkins, que andavam e subiam mais que o famoso Mercedes Benz 1313, muito embora perdessem feio no comparativo com a marca alemã quando o quesito era bomba injetora. Além disso, nas manhãs frias a partida do Perkins invariavelmente era no tranco, feita com a mãozinha de outro caminhão, que o empurrava encostando sua carroceria à dele.
Na década de 1970 ultrapassei e cruzei muito com os Chevrolet de Nêgo Amâncio no trecho entre Uberlândia e Rondonópolis, época em que a estrada não tinha asfalto em Goiás e Mato Grosso. Também os vi na estradinha sinuosa de Rondonópolis para Poxoréu, nos areões para Paranatinga e em muitos outros trechos. Alguns anos depois seus caminhões sumiram do caminho e das portas dos armazéns onde eram presença constante descarregando mercadorias. Nunca mais os vi.
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MOTIVAÇÃO – Em 2003, Wendell Xavier de Souza, escritor guiratinguense, me mandou uma fotografia preto e branco de uma frota do Nêgo Amâncio em Guiratinga, no final da década de 1940. Conversamos por telefone e Wendell elogiou o trabalho daquele frotista em sua região. Desde então passei a pesquisar sobre ele e publiquei parte de seus feitos na revista MTAqui em 2011.
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No começo do século passado, Lageado, na calha do rio Garças, fervilhava com o diamante, mas enfrentava problema por falta de produtos básicos. Esse problema acontecia em razão da inexistência de estradas, o que mantinha aquela e as vizinhas comunidades garimpeiras no então Leste mato-grossense na dualidade da abundância de dinheiro, mas sem ter o que comprar. Essa situação mudou em 1934, quando seis caminhões brotaram na curva da estradinha carroçável, carregados com tudo que se possa imaginar. A proeza de organizar a frota foi de Nêgo Amâncio. Desde então o lugar nunca mais enfrentou problema de desabastecimento. Lageado foi o primeiro nome de Guiratinga. Nêgo Amâncio era o apelido do mineiro de Uberlândia, Joaquim Amâncio Filho, um homem muito à frente de seu tempo.
Em 1929, Nêgo Amâncio comprou seu primeiro caminhão e se tornou um dos pioneiros do transporte rodoviário de cargas no Brasil. Com ele revirada o Triângulo Mineiro e o Sudoeste goiano. Cinco anos após se casar com o volante, atravessou o cerrado, abriu caminhos e conquistou a praça de Guiratinga e vizinhanças. Naquela cidade montou um armazém, de onde despachava em lombo de burros a mercadoria que abasteceria Tesouro, Cassununga, Barra do Garças, Torixoréu, Alcantilado, General Carneiro e as demais localidades da região.
No começo da década de 1940, Nêgo Amâncio tinha de oito a 10 tropeiros, cada um com seu lote de burros, para a redistribuição das mercadorias, que passaram a alcançar a recém-fundada Poxoréu, São José do Planalto (Birro) e a vila de Rondonópolis.
Nego Amâncio criou a integração do comércio com o transporte. Montou a primeira logística de distribuição de armarinhos, medicamentos, secos e molhados com base em Minas Gerais e pontos de distribuição em Mato Grosso. Rumo a Guiratinga seus caminhões transportavam querosene, gasolina de aviação, sal, macarrão, tecidos rústicos, seda, organdi, sandálias, botinas, lanternas, perfumes, quinino para curar malária, rouge pra enfeitar madames e prostitutas, Água Velva, pilhas para rádio, trigo, facão, Enxada Tarza, Chapéu Ramenzoni, Brahma Chopp, Antarctica, filtros, louças, talheres, leques, sombrinhas, galochas e tudo mais que se possa imaginar que coubesse numa carroceria para quatro toneladas. Em sentido inverso os possantes eram carregados com arroz em casca, couro bovino curtido e charque. Além desse vaivém que demorava em torno de 20 dias por viagem nos dois sentidos, seus motoristas eram carteiros informais, pois carregavam correspondências entre os extremos da rota e seus pontos intermediários.
Rodoviário Nêgo Amâncio era o nome da empresa que o tomava emprestado ao seu dono. Seus caminhões que durante anos rasgaram caminhos pelas estradinhas arenosas no cerrado também chegaram a Guiratinga pelo asfalto na MT-270 a Rodovia José Salmen Hanze (Zé Turquinho), que foi pavimentada em 1978. Suas últimas viagens cruzavam Mato Grosso de ponta a ponta e aconteceram em 1982, quando a empresa baixou as portas e recolheu os possantes – a família Amâncio foi marcada por trágicos acidentes rodoviários que custaram as vidas de Leonardo e Eduardo, ambos filhos do fundador.
Em 22 de julho de 1990 Deus percorreu o céu procurando um grande motorista para transportar bênçãos no firmamento. Não o encontrando mandou seus anjos buscarem Nêgo Amâncio, que desde então transferiu ao Paraíso sua rota do rio Garças.
EM TEMPO – Nêgo Amâncio teve destacado papel na consolidação de Guiratinga, Tesouro, Alto Garças, Barra do Garças, General Carneiro, Rondonópolis, Dom Aquino, Torixoréu e Poxoréu. Mesmo assim seu nome sequer é citado pelas autoridades. Naquela região há muitas rodovias e nenhuma recebeu o nome do pioneiro da logística de transporte em Mato Grosso.
FOTOS:
1 – Arquivo de Wendell Xavier de Souza
2 e 3 – Acervo da Família Nego Amâncio
Caros Eduardo e Equipe,
Boa tarde
Espero que este os encontre bem.
Me chamo Leandro Amâncio Bellório, e como meu sobrenome antecipa, sou neto do Sr. Joaquim Amâncio Filho, carinhosamente apelidado de Nêgo Amâncio.
Escrevo esta pequena missiva à vós repleto de gratidão.
Tomei conhecimento hoje pela manhã do belíssimo artigo escrito e publicado no site Boa Mídia – do qual imagino vocês capitaneiam – por meio de meu pai, Joaquim Amâncio Neto, homônimo do homenageado, que, nas palavras dele: “Filho, veja o que escreveram sobre seu avô. Por favor, envie um e-mail para eles agradecendo, você sabe escrever bem.”.
E cá estou.
Contudo, por melhor que tenha sido meu desenvolvimento linguístico-léxico, lapidado por graduações como Letras e Direito, creio que não teria a capacidade lírica de escrever algo como: “Em 22 de julho de 1990 Deus percorreu o céu procurando um grande motorista para transportar bênçãos no firmamento. Não o encontrando mandou seus anjos buscarem Nego Amâncio, que desde então transferiu ao Paraíso sua rota do rio Garças”.
Sendo assim, em nome de toda a família, nossos mais sinceros agradecimentos pela homenagem.
O Sr. Nêgo Amâncio foi (e acreditem, ainda é) um homem ímpar, de uma índole rara nos dias de hoje, e que além das grandes contribuições deixadas para as cidades mencionadas, família e amigos, seu maior legado continua sendo a saudade.
À vocês, meus votos da mais elevada estima e consideração, e que os ventos da prosperidade sejam a força motriz de vossas naus.
Sdds.,
Leandro Amâncio Bellório
Lembro-me bem do Rodoviário Nêgo Amâncio. Lindo texto. Maravilhoso.
Era tio bisavô de 03 filhas minhas.
Dorisval Alves Tenório – médico – Rondonópolis – via Facebook
Comecei no transporte em Mato Grosso quando ele estava parando em 1983 efetuamos a entrega de turbina e componentes da primeira usina feita no governo Júlio Campos a do Rio Coluene, pela data desejo muita luz aos motoristas que singram as rodovias do MT e do BRASIL!
Tarcísio Oliveira – Várzea Grande – via Facebook
Uma história que poucos conhecem. Parabéns meu amigo e mestre.
José Carlos Garcia – jornalista – Rondonópolis – via Facebook