De CasaFlordeM
Por
Eduardo on 24 de janeiro de 2025
Eduardo Gomes
@andradeeduardogomes
eduardogomes.ega@gmail.com
Aos 10 anos entrei numa sala de aula pela primeira vez. Até então não era alfabetizado. Explico: meu pai, Agenor Vieira de Andrade (UDN), era vereador por Governador Valadares representando o recém-criado distrito de Alpercata, onde respondia pelo Cartório do Registro Civil e Tabelionato. Por ranço politiqueiro e perseguição ao meu pai, o prefeito do PSD não construiu escola em Alpercata.
Quando alcancei a idade escolar, meu pai não me mandou para a escola em Valadares. Justificou que os filhos de seus amigos estavam privados do ensino e que não seria justo que eu fosse alfabetizado. Enquanto isso, minha irmã Selma e meu irmão Arnóbio eram mantidos em colégios fora do distrito: ela na sede do município e ele em Caratinga. Isso porque ambos já estudavam quando nos mudamos para Alpercata.
Enquanto amargava o analfabetismo, procurava palavras e frases para copiá-las, embora não soubesse seu significado. Em busca do saber, incontáveis vezes escrevia nos cadernos: “Casa Flor de Maio de Irmãos Pio”. Esse letreiro estava na fachada da imponente loja de tecidos e confecções do outro lado da rua, bem defronte à minha casa, na avenida que hoje leva o nome de meu pai.
Em 1960, meu pai e meu padrinho Juca de Salles conseguiram junto ao governo de Minas a construção do Grupo Escolar São José e contrataram minha tia paterna Carlota para alfabetizar a criançada do lugar. Assim, aprendi o alfabeto e as quatro operações, como se dizia à época. Naquele estabelecimento de ensino cursei o Primário, com direito a canudo e solenidade alusiva.
Nas trevas do analfabetismo sonhava em ler e, até, em escrever um livro. Meu pai lia O Cruzeiro e se debruçava sobre grossos livros normativos da atividade cartorial. Tive pouco contato com as leituras que eram dele porque em 11 de julho de 1961 um câncer traiçoeiro o levou aos 49 anos.
O pai sempre é ídolo e herói do filho. O meu foi mais que isso, pois ao impedir minha alfabetização isolada num universo de crianças vítimas da intolerância política escreveu no meu íntimo o norte que leva à têmpera do verdadeiro cidadão, que desde então busco em meio às adversidades da vida e à dureza do mundo.
Em 2014 escrevi o livro sonhado na infância. Obra – permitam-me rotulá-la assim – simples, rabiscada com os pés no chão, sem pretensão literária. Assim surgiu o Livro 44, depois, desdobrando o desejo no meu analfabetismo, Dois dedos de prosa em silêncio – pra rir, refletir e arguir, mais tarde O ciclo de fogo – biografia não autorizada de Riva, e agora, Nortão BR-163: 46 anos depois. Mas não me sinto escritor, longe disso! É apenas a realização tardia de um sonho bom, sonhado enquanto rabiscava CasaFlordeM, como se estivesse grafando corretamente parte da identificação da loja ao lado de minha casa.
PS – Artigo publicado no Jornal Diário de Cuiabá em 17 de fevereiro de 2017. Postado nesta dia 24 de janeiro pelos 113 anos do nascimento de meu pai.
Dedico o texto à memória de meu pai, de minha tia Carlota – minha primeira professora – e ao meu filho Agenor, professor de Matemática.