De capotão

Era uma vila; sim, uma vila rotulada distrito. Perdida à margem da Rio-Bahia, a longitudinal que era a única ligação por terra – literalmente por terra, entre o Rio de Janeiro e o Nordeste. População pequena, humilde. Todos se conheciam. Nas tardes de domingo a bola rolava no campinho que durante a semana era pasto. O bate-bola era nas imediações do lugar. Caminhoneiros paravam seus possantes. Assistiam ao jogo, conversavam com moradores pra fugir da solidão na boleia sem som, sem ar, sem direção hidráulica. O Brasil interior respirava brasilidade e o mesmo faziam seus profissionais do volante.

 

A movimentação na rodovia era pequena. Pro Sul desciam paus de arara, cebola pernambucana, alho, sisal, madeira, sal, móveis rústicos, redes. Na direção oposta, praticamente tudo, desde as cegonhas Studebaker com automóveis a Água Velva, pilha Rayovac, Benzetacil, creolina Pearson, cera Parquetina, enceradeira Arno, forno JMS, filtro São João, pente Flamengo, enlatado Swith Armour, extrato de tomate Elefante, Alka-Seltzer, tinta Parker, ervilha Etti, enxada Tarza, canivete Corneta, Biotônico Fontoura, LP de Nelson Gonçalves, garrucha Laport, botas Vulcabras, chapéu Ramenzoni.

Isolado ao volante na rodovia esburacada que ora era um interminável canudo de poeira, ora um atoleiro sem fim, o motorista encontrava nos eventos pelo caminho a maneira de fugir da solidão. Encostava seu FNM, Big Job, Mack, Chevrolet Martha Rocha, Studebaker, International Harvester, Berliet, GMC Marítimo, Nash, Volvo, descia, se misturava aos moradores, vivia o futebol, torcia, sorria, vivia socialmente e então retomava à sua jornada estrada afora.

O Big Job

Era assim no final dos anos 1950 e começo da década de 1960. A bola rolava unindo moradores e motoristas em trânsito, num clima de harmonia, com os caminhões abertos sem que ninguém tocasse um dedo sequer em sua boleia ou carga.

Nós, os habitantes do lugar, olhávamos com admiração para os estranhos senhores do volante, e eles, nos tratavam bem.

O Brasil interior era um todo formado por individualidades que se completavam.

Ela, Martha Rocha

O Chevrolet Martha Rocha saltava aos olhos. A sabedoria popular o apelidou assim em alusão ao símbolo da beleza da mulher brasileira, a musa baiana Martha Rocha, que em 1954 foi a primeira Miss Brasil e somente não conquistou o cetro Mundial pela força do imperialismo americano. O fabricante gostou do apelido, o transformou em nome e o usou para promover a venda de seu primeiro caminhão produzido em sua montadora paulista.

O governo JK deixou em obra a pavimentação da Rio-Bahia, que em 1962 foi entregue ao tráfego com o corte da fita inaugural e se passou a chamar pomposamente BR-116. Com o asfalto, a rodovia foi deslocada para fora da minha vila, quer dizer, distrito. Ganhou novo trajeto. Perdemos a companhia dos motoristas que assistiam os jogos conosco aos domingos.

Os caminhões se modernizaram. Viraram máquinas. O caminhoneiro agora é carreteiro e não fica só. Com seu celular tem o mundo nas mãos, sua boleia agora é cabine confortável.

A vila, quer dizer, o distrito, se tornou cidade, afastada da rodovia 1,6 quilômetro, mas mesmo assim cidade com todas as prerrogativas. Hoje, seus moradores descendem em parte dos que viveram aquele tempo e, alguns, inclusive são os próprios. Muitos subiram ao céu para narrar ao Criador a maravilha que foi aquele período; outros buscaram terras distantes em Mato Grosso, Pará e Rondônia.

FNM trucado

Uma bola de fabricação artesanal, toscos uniformes esportivos, jogadores amadores, torcedores parentes uns dos outros ou vizinhos ao lado. Em meio a esse ambiente de confraternização social, brasileiros de diversas regiões, de passagem, paravam para alguns momentos de contato humano – algo impossível de se pensar agora por conta da correria do mundo e do medo da violência generalizada.

O Brasil ganhou em infraestrutura de transporte, mas perdeu em qualidade de cidadania. Não há mais aquele ontem fraterno da minha vila, quer dizer distrito de Alpercata, no município de Governador Valadares.

No asfalto as carretas transitam em alta velocidade. Nas cidades à margem das rodovias as pessoas correm, atropelam a vida, passam por por ela. No hoje a bola rola na tela da TV, em estádios vazios, e nós torcemos na solidão do isolamento social na sala da casa onde habitamos vegetativamente.

Hoje, Ponte São Raimundo sobre o rio Doce, na BR-116, em Governador Valadares, Minas Gerais

Saudade dos tempos dos caminhões parados, a bola rolando, as meninas do lugar flertando com motoristas sonhando em encontrar entre eles o príncipe encantando montado em seu possante Fenemê passo longo, azul, com cama macia na boleia. Pobre humanidade que retrocede enquanto a ciência avança, que ganha contornos de impessoalidade na contramão das relações humanas, que troca a harmonia pela violência e o respeito ao meio ambiente pelo desmatamento criminoso.

A vida é caminho sem volta, mas se Deus me concedesse o direito de escolher uma estrada, não tenho dúvida que pegaria a velha Rio-Bahia e à exemplo daqueles caminhoneiros, pararia na minha vila, quer dizer, distrito, pra ver seu povo feliz movido pelo sentimento de irmandade e pela paixão pelo capotão, que era o nome da bola artesanal.

Eduardo Gomes é jornalista em Cuiabá
eduardogomes.ega@gmail.com

FOTOS: Arquivo de publicações especializadas

 

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Comentários (13)
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  • Selma Vieira de Andrade

    Se você conseguir, meu amado irmão, me leva junto e quem sabe, podemos “esticar” até Barra do Cuieté e lá, no Porto da Barca, olharemos o rio correndo, a casinha onde morei e também a casa onde você nasceu.Veremos também o velho pontilhão e fingiremos que o tempo não passou.Depois voltaremos para a realidade, mas com a certeza que fomos muito felizes. Paixão não meu irmão, mas muita saudade, de lá, de Alpercata, de Valadares e de tudo que diz respeito à nossa Minas Gerais.

    Selma Vieira de Andrade – Rondon do Pará (PA)

  • Agenor de Andrade Fernandes

    Lendo este texto eu voltei num passado que nao vivi,mas é narrado com tanta sensibilidade que so quem tem um coraçao grande seria capaz de fazer com que a gente viajasse no tempo…Parabéns Tidú e “A SUA BENÇÃO”…

    Agenor de Andrade Fernandes – Vitória (ES)

  • Maria das Graças Salvador Araújo

    Que linda história Edu, viajei no tempo, tinha 8 anos e tenho boa memória, nos morávamos em frente à loja de tecidos Flor de maio do Sr. Joaquim Pio (Sr. Quinzinho) e do Armazém Regina do Sr. José Monteiro, parabéns pelo texto.

    Maria das Graças Salvador Araújo – Alpercata (MG)

  • Eduarti Fraga

    Excelente o retrato humano e bucólico desse Brasil de JK

    Eduarti Fraga – Chapada dos Guimarães

  • Cláudia Beatriz Andrade Fernandes

    Meu Tidu Eduardo Gomes Andrade..Ímpossível não viajar no tempo com o seu texto e, o melhor de tudo, saber que de certa forma, fazemos parte dessa histório.Amo você!

    Cláudia Beatriz Andrade Fernandes – Governador Valadares (MG)

  • Vera

    Que lindo Eduardo, muitas saudades mesmo desse tempo devagar, que não vivíamos de correria, tínhamos momentos de afetos constantes. Mas temos você, que nesse texto nos recoloca naquelas vivências, naqueles lugares e nos faz refletir que a vida é para ser vivida plenamente. Um grande abraço.

    Vera Araújo – Cuiabá

  • Diogo Egídio Sachs

    Grande texto.

    Diogo Egídio Sachs

  • Jacyara Cortez de Lucena

    Fantástico resumo de um tempo que a simplicidade prestava seu culto ao progresso.
    Parabéns, Mestre!

    Jacyara Cortez de Lucena – Maracaju (MS)

  • Baltazar Ulrich

    Lindo lindo. Tínhamos várias rodovias Rio-Bahia neste gigante Brasil

    Baltazar Ulrich – Cuiabá

  • Antoinne Saad

    Maravilhoso.

    Antoinne Saad – Cuiabá

  • Renato Gomes Nery

    Brigadeiro você é um craque em crônicas. Um grande abraço

    Renato Gomes Nery – Cuiabá

  • Rosário Cordeiro

    Que lindo Eduardo! Esta foi a realidade de muitos lugarejos.

    Rosário Cordeiro – Belo Horizonte (MG)

  • Nei Ferraz Melo

    Maravilha!

    Nei Ferraz Melo – Cuiabá