ALTA FLORESTA 48 ANOS – Cabeça o garimpeiro lendário

Em 2001 entrevistei o lendário Cabeça

Em 19 de maio Alta Floresta celebra 48 anos de fundação, pelo colonizador visionário Ariosto da Riva. A melhor forma de mostrar aquela grande cidade é focalizar sua gente. Na segunda edição do livro DNA do melhor lugar do mundo, que publiquei em outubro de 2023, tirei da oralidade e levei para a história registrada em literatura, o garimpeiro Cabeça. Outros personagens também são retratados na obra, e serão postados aqui, na sequência. Fica o convite à leitura no texto que se segue.

 

Cabeça

 

O garimpeiro Cabeça

Uma espécie de rei no garimpo de ouro em Alta Floresta, Cabeça dava as cartas na pista que levava seu nome. Numa madrugada, depois de um show artístico, tendo por testemunho a Floresta Amazônica, sob a luz oscilante gerada por um barulhento motor estacionário e num ambiente impregnado pelo azedume da cerveja derramada e as bitucas de cigarro pelo chão, dona Maria Odete rebolou Conga, Conga, Conga para ele num momento eternizado em sua memória – afinal quem rebolava era ninguém menos que a Rainha do Bumbum.

Mais de 10 mil garimpeiros extraíram grande quantidade de ouro na Pista do Cabeça no ciclo daquele metal no Nortão. Ele sustentava que 60 toneladas foram arrancadas naquele garimpo. Quem controlava a área de 19 mil hectares da pista era o paraibano Eliézio Lopes de Carvalho, o Cabeça, que recebeu uma montanha dourada como pagamento de sua parte no garimpo e por remédios, gasolina, diesel, bebidas, mulheres, alimentos e munição que fornecia aos garimpeiros, além do transporte aéreo que fazia com seus aviões. Cabeça jurava que por seus bolsos passaram 12 toneladas – pode ser exagero, mas ele sustentava a afirmação com fé. Sua autoridade, segundo ele, era conferida pelos direitos minerais que teve e seu espírito de liderança.

Os donos das pistas no Nortão e Pará faziam chover e acontecer. Nos anos 1980, com o garimpo em alta, Cabeça foi um dos mais importantes e estavam sob seu poder a segurança, saúde, as regras sociais e a economia dos milhares de garimpeiros de todos os cantos do Brasil que viviam a aventura do ouro na Pista do Cabeça localizada na calha do rio Paranaíta, da Bacia do Teles Pires, em Alta Floresta.

A pista foi construída em quatro dias, inaugurada em 2 de dezembro de 1981 e funcionou até 1985, quando o governo abriu uma rodovia que esvaziou o tráfego aéreo; tinha 500 metros de extensão por 40 de largura, sem obstáculos nas cabeceiras. Antes dela para se chegar ao local somente pela ‘varação’ – que no jargão garimpeiro significa avançar abrindo picada. Cabeça contou que pela mata demorava-se nove dias para percorrer o trecho de Alta Floresta até o ponto onde a pista seria aberta. Disse ainda, que antes de anunciar a ‘fofoca’ – no mesmo jargão, a descoberta de ouro – realizou uma pesquisa na área durante 10 meses, serviço este executado por uma equipe com geólogo e engenheiro de minas. Com base na pesquisa e sua constatação, em 17 de março de 1982, com a ‘despesca’ de 2 kg de ouro por extração manual em um barranco, a Pista do Cabeça ganhou a Amazônia nas mensagens dos pilotos de garimpo e pelo boca a boca dos motoristas das camionetes que faziam o vaivém dos aventureiros na região.

Em 2001, numa entrevista que me concedeu em Alta Floresta, Cabeça disse que em sua pista não houve violência e que ninguém desafiou sua autoridade. Sua relação com os garimpeiros às vezes ganhava contornos paternais. Fogoió, goiano solitário no mundo, ficou gravemente enfermo. Em Alta Floresta o médico Mário Nishikawa recomendou sua remoção para Cuiabá e Cabeça prontamente atendeu. Mandou um de seus aviões transportá-lo. Duas semanas depois, Fogoió voltou a fazer o que sabia e gostava: garimpar.

A paz entre os garimpeiros representava aquilo que foi o quase reino do Cabeça, na pista que levava seu nome e onde a última palavra era a dele, inclusive na hora do Conga, Conga, Conga da Rainha do Bumbum. Em nossa conversa ele evitou detalhes sobre as regras entre donos de pistas e garimpeiros e também fugiu do tema saudade, mas em determinado momento, sem conseguir conter a lamúria, desabafou, “Tive muito dinheiro, bons aviões – quatro ao mesmo tempo – andei pelo mundo, mas tudo passou”.

“Tudo deu certo”, disse Cabeça sobre o ciclo do ouro. Certa vez sentindo necessidade de viajar para o exterior e arriscar a sorte em cassino de luxo, embarcou para os Estados Unidos, após enfrentar a burocracia pelo passaporte. Em Las Vegas, depois de uma noite na jogatina, voltou para o hotel com 36 mil dólares a mais no bolso.

Segundo Cabeça, no auge do garimpo havia 57 pistas no município de Alta Floresta, que à época englobava Carlinda, Paranaíta e Apiacás. Nesse período sua pista chegou a registrar 80 poucos diários. Nos municípios da região e na vizinhança paraense a movimentação também era feita por aviões, por falta de rodovias.

A agora ex-Pista do Cabeça fica a 75 quilômetros de Alta Floresta. Sua desativação aconteceu em 1985 com a construção de uma rodovia que a retirou do isolamento. A vila Novo Cruzeiro, que lhe dava suporte urbano permanece e em seu entorno surgiram as comunidades rurais de Pista Nova, Pista do Padeiro, Ourolândia e outras. Sua intensa atividade garimpeira movimentou aventureiros de muitas regiões do país e sua rotatividade era muito grande. Além da pista e dos cabarés havia também um hospital improvisado para atender as vítimas da malária, uma escola para 30 crianças e estabelecimentos comerciais. Cabeça recebia parte do lucro dos comerciantes e do ouro extraído, além de cobrar por pouso dos monomotores e bimotores que ‘faziam o garimpo’ – o tempo médio de voo de Alta Floresta à pista era de 15 minutos e a passagem custava 6 gramas de ouro – ninguém podia transportar equipamento ou diesel para a pista, onde Cabeça monopolizava esse mercado.

Pista do Cabeça virou referência regional. Até 13 de maio de 1986 ela pertencia a Alta Floresta, mas naquela data o governo emancipou Nova Canaã do Norte e a mesma tornou-se seu distrito. Uma revisão territorial a devolveu ao município de origem, mas sem o status de distrito.

Cabeça promoveu 36 shows nacionais para animar as noitadas dos garimpeiros e desanuviar o ambiente sempre tenso, competitivo e de desconfiança no garimpo. José Augusto, Cláudia Barroso, Amado Batista, Waldick Soriano, Walter Basso, Nelson Ned, Donizete e Suzamar foram algumas dessas atrações. Gretchen fez um show por lá e na madrugada rebolou Conga, Conga, Conga para o anfitrião. Essa senhora simplesmente era a rainha da preferência nacional.

ADEUS – Alta Floresta perdeu o lendário Cabeça no final da tarde de quinta-feira, 13 de julho de 2017. Depois de 10 dias internado, Cabeça não resistiu mais ao tumor que o minou pelo abdome. Velado por amigos e antigos companheiros, o líder garimpeiro deu adeus ao mundo. Com o fim do garimpo, o dinheiro tomou Doril. Cabeça morreu pobre.

Cabeça deixou a viúva, dona Sueli de Oliveira Riker, e os dois filhos do casal: Eliézio Lopes Carvalho Filho e Hélio Wilson Riker Carvalho. Dona Sueli conheceu o marido em Santarém, onde nasceu.

Aventureiro desde a adolescência, Cabeça nunca teve parada antes de Alta Floresta, onde chegou em 1980. De família maranhense, seu local de nascimento é um segredo que o acompanhou ao túmulo. Em seu registro de nascimento lavrado em Alta Floresta consta que ele nasceu no dia 23 de julho de 1944 na cidade paraibana de Lagoinha, localidade que nunca existiu. O cartorário confiou na palavra dele enquanto declarante e na confirmação de pessoas convidadas ao testemunho. O detalhe da naturalidade não altera o histórico do homem que a Imprensa chamou de Rei do Ouro. Seu reino não acabou como seu dinheiro: virou lenda e essa é para sempre.