Esse “evangelho” tinha um título interminável, como era comum no fim do século 18: “Compilação das leis constitutivas das colônias inglesas, confederadas sob a denominação de Estados Unidos da América Setentrional“.
Com muito custo, valendo-se de um dicionário e da ajuda de amigos poliglotas, o militar conhecido como Tiradentes foi metabolizando o ideário republicano e democrático que guiara a emancipação dos EUA e se pôs a pregá-lo, sem muita preocupação em ser discreto, no que então era a cidade mais opulenta (ainda que ameaçada pela decadência) de Minas e do Brasil.
A relação íntima do alferes com esse livro curioso, hoje preservado no Museu da Inconfidência, é um dos muitos detalhes vívidos de sua trajetória em “O Tiradentes”, nova biografia do rebelde mineiro escrita pelo jornalista Lucas Figueiredo.
A documentação da época permitiu reconstituir detalhes como os móveis que havia na casa de fazenda onde Joaquim (como é chamado pelo autor) cresceu, os entreveiros que teve com os poderosos quando ainda era só um soldado perseguindo salteadores na serra da Mantiqueira e sua participação, ao mesmo tempo corajosa e desatinada, no movimento conhecido como Inconfidência ou Conjuração Mineira.
Do ponto de vista do leitor moderno, esse último ponto chama a atenção: o alferes não tinha o menor pudor de conclamar mineiros e cariocas (já que viajava sempre ao Rio) a se livrar do jugo português, seja na estrada, seja em lugares públicos.
“Tiradentes adotou uma estratégia radical, sem deixar uma porta aberta para recuo. Essa era uma característica dele: a ousadia e o destemor temperados pela falta de juízo. Ele sabia que eram altas as chances de ser punido, mas pagou para ver. Por outro lado, se a conjuração tivesse vingado, seria em boa parte graças a seu trabalho”, contou Figueiredo à Folha.
A transformação do oficial da cavalaria colonial (o chamado regimento dos Dragões) em revolucionário foi uma mistura curiosa do pessoal com o político. Em comum com outros inconfidentes (vários dos quais de status social bem mais elevado), Joaquim tinha a insatisfação com suas oportunidades profissionais e econômicas.
Apesar de ter passado mais de dez anos nos Dragões, recebendo comandos regionais e missões importantes, continuava com a patente e com o salário originais, sem conseguir amealhar patrimônio de nota.
As redes corruptas de compadrio, a inflexibilidade na cobrança de impostos por parte da Coroa e a proibição de uma série de atividades econômicas no Brasil pareciam drenar as oportunidades da população mineira, que já se aproximava de meio milhão de habitantes graças à corrida do ouro na região. (Tiradentes gostava de bradar aos quatro ventos os resultados de um censo pioneiro de Minas, como argumento em favor da ideia de que a região poderia ficar independente sem grandes problemas.)
Esse ponto -a preocupação com as oportunidades perdidas por causa da dominação colonial- era algo que aproximava os revoltosos mineiros de suas contrapartes americanas.
“Havia uma insatisfação comum de fundo econômico, mais especificamente relacionada à voracidade fiscal de Londres e Lisboa. Mas os revoltosos de ambas as colônias também desejavam se livrar das amarras comerciais impostas pelos respectivos reinos para explorar as potencialidades da terra onde viviam. Não foi à toa que a cúpula da Conjuração Mineira tentou copiar o modelo americano em diversos aspectos, como a opção pela república e a busca de financiadores entre grandes comerciantes da França”, diz Figueiredo.
O livro ao mesmo tempo relativiza e confirma, em parte, a visão de Tiradentes como “Cristo” ou “santo” (evitando ao máximo incriminar os companheiros, acabou sendo o único executado entre os conjurados). Essa disposição para ser bode expiatório pode estar ligada aos dois anos passados em regime de solitária e à doutrinação religiosa a que foi submetido durante o cárcere.
Esquecido durante meio século, o alferes foi reabilitado pelo movimento republicano no século 19 e ganhou natureza política polimórfica, sendo usado como símbolo tanto pela PM de Minas quanto por grupos da esquerda armada durante a ditadura militar.
“É sempre assim: toda vez que nos vemos em uma sinuca de bico, sejamos de direita, de centro ou de esquerda, recorremos a Tiradentes para tentar explicar o Brasil e os brasileiros. De certa forma, sua figura complexa é o reflexo de uma nação difícil de ser explicada”, afirma o biógrafo Figueiredo.
O TIRADENTES: UMA BIOGRAFIA DE JOAQUIM JOSÉ DA SILVA XAVIER
AUTOR Lucas Figueiredo