A (Verdadeira) luta pela erradicação da aftosa em Mato Grosso

Eduardo Gomes
@andradeeduardogomes
eduardogomes.ega@gmail.com

Mato Grosso recebeu a certificação da Organização Mundial de Saúde Animal (OMSA) de zona livre de febre aftosa sem vacinação. A solenidade, em Paris, nesta quinta-feira (29) é o coroamento de uma antiga luta protagonizada por milhares de pecuaristas e ao longo de mais de duas décadas liderada por Zeca D’Ávila. Um show de fotos exibindo rostos sorridentes mostra o clima turístico de mato-grossenses na inigualável La Ville Lumière. Da forma como a conquista é apresentada, fica a imagem que seu marco temporal é a partir do poder sindical ora reinante na  Federação da Agricultura e Pecuária (Famato). Testemunhei o curso dos acontecimentos que viraram a página sanitária animal da terra onde pasta o maior rebanho bovino brasileiro e não poderia permanecer calado, pois nesse caso meu silêncio seria mais um apunhalamento de uma das mais dignas vitórias da economia rural do maior estado da agropecuária nacional e que tem importante participação na política de segurança alimentar mundial.

Paris ficou pequena para tanto alegria

Pena que a insensibilidade da Famato, na figura de seu presidente Vilmondes Sebastião Tomain, e do governo estadual representado pelo vice-governador Otaviano Pivetta – que chefiou a delegação mato-grossense – não reconheça os méritos de Zeca D’Ávila na luta pela construção da política de sanidade animal, ora coroada. Pena que o grande timoneiro da vitória dos pecuaristas não foi incluído à delegação, para em nome dos conterrâneos do Marechal Rondon recebesse o troféu mais sonhado coletivamente de Alto Taquari a Apiacás, de Vila Rica a Comodoro, de Vila Bela da Santíssima Trindade a Pontal do Araguaia.

Ao isolar Zeca, a Famato comete a injustiça de amnésia de conveniência contra os que realmente baniram a aftosa das invernadas e confinamentos mato-grossenses. Felizmente, a maioria dos que construíram a qualidade sanitária do rebanho bovino permanece entre nós. Porém, muitos partiram nas asas do adeus rumo aos céus. A presença de Zeca em Paris seria um gesto simbólico como se ali estivessem Antônio Luiz de Castro, Homero Alves Pereira, Edson Piovesan, José Vicente Dorileo (Zelito Dorileo), Paulo Garcia Nanô, Renê Barbour, Ivo Ferreira Mendes, Wilmar Peres de Farias, Ênio José de Arruda Martins, Miguel Jorge Chama, Edson Ricardo de Andrade, José Pinto, João Batista Ferreira Borges, Naim Charafeddine, João Osmar de Oliveira, José Fortes Costa Bustamante, Alcebíades Fávaro, Gilberto Porcel, Amado de Oliveira, Ildon Maximiano Peres, Pedro Paulo Andrade, Celso Jardim Rodrigues da Cunha, José Wellington Gomes de Lima, José Fonseca de Moraes, Rubens Resende Peres, Celso Tura, Luiz Castelo, Vicente Esteves Pimenta, Odil Marques Garcia, Hélio José do Carmo, Celso Luiz Fante, Argemiro Ribeiro, Florisval Fabris, Alberto Cesário (Betinho), Marco Antônio Miranda Soares, Moacir de Freitas, Cezalpino Mendes Teixeira, Laércio Fernandes Fassoni, Ivan Augusto Pelissari e os demais precursores da moderna pecuária, que deixaram como legado ao povo de Mato Grosso

Posse para a mídia inundar Mato Grosso

A história escrita pelos beneficiários das circunstâncias e das coincidências dos calendários nem sempre reproduz cenário com isenção.

Fica o convite à leitura sobre a verdade dos fatos:

Até 1995 a febre aftosa era o grande nó da pecuária mato-grossense e os focos da doença pipocavam permanentemente em todas as regiões, tanto nas grandes fazendas quanto nos sítios. No ano seguinte, graças ao começo de uma fiscalização sanitária intensa, o cenário melhorou parcialmente. O último foco de aftosa foi notificado em 12 de janeiro de 1996 numa propriedade com 116 cabeças no município de Terra Nova do Norte, no Nortão. Não houve comprovação laboratorial, apenas certificação clínica – tantos eram os casos. Em Cuiabá, o Instituto de Defesa Agropecuária (Indea) foi notificado e quatro dias depois divulgou o fato. Desde então, nunca mais a doença infectou bovinos mato-grossenses, e para efeito referencial 16 de janeiro entrou para a história como sendo o dia da erradicação daquela doença com forte apelo econômico.

Acima, o registro histórico. Na sequência, considerações sobre os caminhos que levaram Mato Grosso a banir a aftosa de suas invernadas.

Com a aftosa avançando sobre as invernadas Mato Grosso enfrentava barreiras sanitárias e não tinha mercado internacional para sua carne. Seu rebanho era de 14,87 milhões de cabeças com fortes indicativos de expansão, com a formação de pastagens, e com investidores do setor, que voltavam seu olhar para a faixa de fronteira com a Bolívia, Nortão, Chapadão do Parecis e o Vale do Araguaia.


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No começo dos anos 1990 o Ministério da Agricultura elaborou o Programa Nacional de Erradicação da Febre Aftosa. Em 31 de dezembro de 1979 o governador Frederico Campos instalou o Indea, que permaneceu com atuação reduzida até o começo desse programa de erradicação federal, do qual se tornou executor regional. Para reforçar o enfrentamento, em 1994 o setor pecuário liderado pela Famato criou o Fundo Emergencial da Febre Aftosa Fefa), que funcionou até 14 de agosto de 2009, quando foi substituído pelo Fundo Emergencial de Saúde Animal (Fesa). O pecuarista Zeca D’Ávila, então presidente da Famato, liderou e dirigiu o Fefa. Mesmo com todo o aparato oficial de enfrentamento da doença, o sucesso da erradicação tem que ser creditado em sua maior parte aos pecuaristas, que sempre cumpriram seu papel de vacinar.

O trabalho de Zeca pela vacinação foi fabuloso. De porta em porta nos sindicatos rurais ele levava a mensagem pela vacinação, nem sempre compreendida e aceita no primeiro momento, pois até então ainda havia a cultura de se aplicar querosene na nuca de mamando a caducando, como se aquela prática tivesse poder de imunização. Com paciência, mas sem abrir mão da  determinação, Zeca sacudiu Mato Grosso e merece reconhecimento por sua atuação. Presenciei e registro que certa vez, em Planalto da Serra, ele bateu na mesa com tanta força, que fraturou a mão direita.

Um calendário de vacinação associado a uma intensa fiscalização sanitária liderada pelo Indea com suporte da Delegacia Federal da Agricultura e a participação do Fefa, os sindicatos rurais e sindicatos representantes dos diversos elos da cadeia pecuária criaram uma blindagem para Mato Grosso. Em todas as etapas da vacina o índice de cobertura vacinal sempre ficou acima de 98%. A doença saiu das invernadas mato-grossenses, mas permaneceu infectando do outro lado das divisas com Mato Grosso do Sul, Pará e Amazonas, além da Bolívia que tem fronteira de 983 quilômetros com Poconé, Cáceres, Porto Esperidião, Vila Bela da Santíssima Trindade e Comodoro. O rigor para impedir o ressurgimento da aftosa obrigou o uso de rifles sanitários em bovinos e ovinos em algumas ocasiões.

O reconhecimento pelo trabalho e pela qualidade sanitária do rebanho aconteceu no ano de 2001, em Paris, quando a Organização Mundial de Saúde Animal (OIE rebatizada OMSA) conferiu a Mato Grosso a certificação de zona livre de aftosa com vacinação. Ou seja, a OIE abriu a porteira do mundo para a carne bovina mato-grossense, o que lhe permitiu invadir as gôndolas do exigente mercado da União Europeia.

Sem aftosa e com o mundo escancarado aos seus produtos, os pecuaristas investiram em cruzamentos, transferência de embriões, melhoria genética do rebanho, manejo para obtenção de precocidade no abate, confinamento, semiconfinamento e outras práticas que resultaram na liderança mato-grossense na pecuária nacional. Com essa evolução e o fim das barreiras sanitárias internacionais por conta da aftosa, as plantas frigoríficas, laticínios, cooperativas e curtumes passaram a ocupar nichos de mercado mundo afora, no país e internamente, com carne bovina com osso e desossada, enlatados, miúdos comestíveis, leite, lácteos e couro.

Em 2023 o Indea retirou a obrigatoriedade da vacinação contra a aftosa dos bovinos e búfalos, e em 2024 Mato Grosso foi oficialmente reconhecido pelo Ministério da Agricultura como livre da febre aftosa sem vacinação. Assim, o maior rebanho bovino brasileiro, com mais de 31.5 milhões de cabeças pasta sem necessidade de cobertura vacinal contra a doença que motiva este texto.

DEUS NOS ACUDA – Até meados da década de 1990 a pecuária mato-grossense enfrentou o problema da aftosa, que sempre era abordada em rodas de prosa, mas quase nunca focalizada pela mídia. Em 1994, um foco da doença foi notificado numa propriedade em Rondonópolis,  próxima à Exposul (maior exposição agropecuária de Mato Grosso) que seria realizada dentro de poucos dias. À época eu respondia pela sucursal do jornal Diário de Cuiabá naquela cidade. Tomando conhecimento do fato procurei o Sindicato Rural – promotor da Exposul – que não quis se manifestar. Enviei matéria que ganhou manchete, editorial, notas e uma charge. Foi um Deus nos acuda.

A Exposul ficou na mira dos olhos da pecuária nacional. Se a aftosa rondava a grande feira agropecuária mato-grossense, como estaria a situação nas invernadas? Esse questionamento ditava o tom da conversa entre pecuaristas e outros elos da grande cadeia do agro.

Diante do material do jornal, a delegada do Ministério da Agricultura em Mato Grosso, Alzira Catunda, pediu o cancelamento da Exposul. O Instituto de Defesa Agropecuária  (Indea) é vinculado à Secretaria de Agricultura (nomenclatura da época). O secretário daquela Pasta, Aréssio Paquer, queria lançar-se candidato a deputado federal  e para não perder apoio determinou ao veterinário Paulo Bilego, presidente do Indea, que a Exposul fosse realizada, mas sob cuidados sanitários especiais. Aréssio disputou a eleição, sem sucesso.

Dentre as medidas adotadas para a Exposul, o reforço da vacinação dos animais, proibição dos leilões a campo e da tradicional cavalgada que percorre ruas da cidade na abertura da feira etc.

Houve muita pressão por parte de sindicalistas rurais para que o jornal se retratasse. Alguns criaram animosidade comigo. Numa tensa reunião em Rondonópolis fui acusado de prejudicar o comércio local por conta do esvaziamento da Exposul. Não faltaram ameaças, mas não recuei. A  linha editorial foi mantida, e ela, sem dúvida, antecipou a deflagração da luta pela erradicação da febre aftosa, o que foi excelente, pois a cada dia que se passasse a doença atingiria mais cabeças bovinas e os prejuízos aumentariam.

Livre da aftosa, a carne mato-grossense ganhou o mundo e virou item importante da pauta de exportação. Transcorridos 28 anos daquele episódio sanitário no município de Terra Nova do Norte, do qual poucos sabem, sinto que meu papel jornalístico foi cumprido, em 1994, quando denunciei que a aftosa rondava a Exposul.

O comando da Famato além de comemorar a certificação da OMSA reverencia a data de 16 de janeiro, mas teima em desqualificar o trabalho de Zeca e a denúncia jornalística em 1994, que despertou Mato Grosso para a trágica realidade da aftosa, porque via de regra, para o sindicalismo pelego e oportunista, a história em seu raio de atuação é escrita por ele e ninguém mais.

Fotos:

1 – Geraldo Tavares

2 e 3 – Divulgação

4 – blogdoeduardogomes.com.br