O ontem, bem recente no Vale do Araguaia, onde uma vila foi demolida e sua população jogada à margem da estrada
Leiam este texto de fevereiro de 2013, sem atualização, no original, pra que entendam o que aconteceu em Posto da Mata.
Fazenda Suiá-Missú, mais conhecida por Fazenda do Papa, Vale do Araguaia, vésperas do Ano Novo de 2013. Dezenas de agentes da Polícia Federal, de patrulheiros da Polícia Rodoviária Federal e soldados da Força Nacional, com apoio logístico do Exército, iniciam uma operação de guerra no entroncamento das rodovias BR-158/242, nos municípios de Alto Boa Vista e São Félix do Araguaia; a área se estende a Bom Jesus do Araguaia. Armados com fuzis, metralhadoras, granadas e bombas de efeito moral eles dão cobertura ao maior despejo ocorrido em Mato Grosso.
Na vila Estrela do Araguaia, conhecida como Posto da Mata, que era a área urbana da propriedade, e na zona rural, milhares de brasileiros são arrancados de suas casas. Tratores avançam sobre as construções – algumas com mais de 35 anos – e botam tudo abaixo. Uma retroescavadeira se desloca pela rua e para ao lado do casebre de tábuas e chão batido onde Waldir de Souza, 31, eletricista, mora com a mulher Jakeline Aparecida e os filhos do casal, Gabriele, a Gabi, 5, e Kauan. Policiais apontam armas de guerra para Waldir e mandam que desocupe o imóvel. Ele sai às pressas com a família. Seus poucos móveis já estão à beira da estrada, mas ainda falta retirar alguns pertences, só que a soldadesca não permite. Nem mesmo uma guirlanda, enfeite natalino que Jakeline pendurou na porta de compensado da sala pôde ser salva. A máquina pesada avança. Em 10 minutos não havia mais nada em pé. Gabi está em prantos e sua mãe também. O pai não tem uma gota de sangue na face diante do que vê. Kauan é recém-nascido. Acompanhando os pais, Gabi sai sem rumo, assustada. A família vaga de um lado para outro e a menina entra em crise de choro convulsivo quando se depara com sua escola também derrubada pela força da lei. Ao seu redor, dezenas de crianças fazem um coro de lágrimas e dor sem entender a razão de tanta violência contra elas.
O Vale do Araguaia virou cenário de um êxodo de mãos calejadas.
Sonhos de famílias acalentados há décadas ruíram quando seus integrantes perderam suas casas, suas lavouras, suas pastagens, ao terem que vender seu gado a preço de banana antes que fosse confiscado e doado ao programa Fome Zero.
As cidades da região viraram destino dos expulsos.
Waldir foi com a família para Alto Boa Vista, onde conseguiu um bico de eletricista numa oficina à margem da BR-242. Sem teto, alugou um barraco por 200 reais mensais.
A grande maioria ficou à deriva, sem ter onde se abrigar e se protegendo da chuva e do sol em barracos de lona montados em acampamentos, sem trabalho, sem eira nem beira. Alguns buscam atendimento em clínicas psiquiátricas em Goiânia. Meninas na puberdade correm o risco de serem exploradas sexualmente. Garotos adolescentes se tornam presas fáceis do tráfico formiguinha. Homens honrados podem sucumbir e se deixar enveredar pelos crimes famélicos.
Algumas famílias estão alojadas numa antiga e desativada escola agrícola em Alto Boa Vista. Outras, em número pequeno, foram assentadas no “Saara” – terra arenosa e sem água -, que é o nome irreverente dado pela sabedoria popular a um assentamento fracassado do Incra, para onde foram levados.
Gabi perdeu a casa e a escola. Sua transferência escolar sequer pôde ser feita, porque a polícia não deu tempo para que a documentação da Escola Municipal de Educação Infantil e Fundamental Boa Esperança fosse retirada antes de as máquinas demolirem o prédio onde centenas de crianças assistiam às aulas regularmente.
A pequena Gabi não é caso isolado. Seus 19 colegas de classe da professora Juliene também enfrentaram o mesmo problema, mas todos contaram com a compreensão das escolas que os absorveram e o famoso jeitinho brasileiro conseguiu a metamorfose do recomeço da vida escolar sem alusão ao passado.
Igual a Gabi, Israel Cláudio Cabral Martins Novaes, 15, também foi vítima do despejo em Posto da Mata. Israel era aluno do 7º Ano na classe da professora Taís. Sem identidade escolar, a Escola Betel em Alto Boa Vista o acolheu e, agora, ele recomeça os estudos, mas ainda assustado com as cenas que presenciou na virada do ano. “Um helicóptero pousou na porta da nossa casa e meu pai foi o primeiro a receber a ordem de despejo; eles começaram a derrubada pela nossa casa”, conta, sem esconder a mágoa que sente.
Quem passa pela BR-158 ou pela BR-242 vê um verdadeiro cenário de devastação onde havia a vila Estrela do Araguaia. Não menos devastadora é a paisagem na zona rural, onde nada ficou em pé.
Mas, afinal, o que se esconde por trás da demolição em massa e do desalojamento das famílias que eram posseiras na antiga Fazenda do Papa há mais de três décadas?
Na verdade, o nome da ação que botou as famílias à margem da estrada é desintrusão e começou numa ação movida pelo Ministério Público Federal na Justiça Federal em Cuiabá pleiteando suposta reintegração da área aos xavantes, o que foi aceito pelo juiz federal Julier Sebastião da Silva. Depois de tramitar com Julier e em tribunais, a ação chegou ao Supremo Tribunal Federal, que ordenou reintegração da área de 165.241 hectares – sem georreferenciamento – doada aos índios pela multinacional Agip Petroli, ligada ao Vaticano, e que foi rebatizada como Terra Indígena Marãiwatsédé. Na prática foi uma ingerência internacional em assuntos brasileiros diante da omissão dos governos dos presidentes Itamar Franco e seus sucessores FHC, Lula e Dilma Rousseff.
ENTENDA O CASO
Em 1960 o colonizador Ariosto da Riva comprou a fazenda Suiá-Missú, com 1,5 milhão de hectares, formada por várias matrículas no Cartório do Registro de Imóveis de Barra do Garças. A parte que se tornou Marãiwatsédé pertencia a essa área. Seis anos depois Ariosto vendeu a propriedade para a família Ometto, de Araras, no interior paulista. O líder desse clã, Hermínio Ometto, mandou abrir a Estrada da Suiá-Missú, que deu origem à BR-158 entre Nova Xavantina e Estrela do Araguaia. De Ometto a Suiá-Missú foi parar nas mãos da Agip, quando passou a ser chamada de Fazenda do Papa e era considerada o maior latifúndio mundial, com direito a agência bancária, com mais de 100 mil matrizes bovinas e, dizem, um secreto campo experimental de armas Beretta – indústria que também teria fortes laços com o império religioso de Sua Santidade o papa.
Depois de usar e abusar de Suiá-Missú a Agip vendeu grandes áreas desmembradas de sua matrícula. A parte que era ocupada por posseiros ficou em suas mãos. Quando da Eco-92 no Rio de Janeiro, o presidente da Agip, Gabriele Cagliari, anunciou que doaria aos índios a área onde os posseiros se encontravam. O presidente da República, Itamar Franco, aceitou a doação sem levar em conta o problema social que aconteceria com o despejo das famílias que a ocupavam.
A doação ganhou espaço na mídia mundial e não faltaram vozes ecoloucas sustentando que se tratava mesmo de terra indígena, quando na verdade a Fazenda do Papa foi área de perambulação dos xavantes, que vivem às margens do rio das Mortes. Os índios dessa etnia que perambulavam para caça naquela propriedade foram retirados em 1966, por Ariosto, em aviões da Força Aérea Brasileira, e levados para suas aldeias em Barra do Garças.
Itamar Franco gostou da doação. FHC, Lula e Dilma Rousseff também. Sem apoio do governo federal, os posseiros foram vencidos. Em Mato Grosso a Assembleia Legislativa tentou reverter a situação. Em 2011 os deputados aprovaram uma lei de autoria dos deputados José Riva e Adalto de Freitas autorizando o Estado a permutar 230 mil hectares do Parque Estadual do Araguaia, nas vizinhanças da Fazenda do Papa, por ela, mas as ONGs, a Funai e o Ministério Público Federal refugaram.
PS – Com a posse da terra pelos xavantes o governo federal suspendeu o projeto de pavimentação da BR-158 no trecho de 126 quilômetros daquela área. Em razão disso, os municípios ao Norte da antiga vila de Posto da Mata, a exemplo de Vila Rica, Santa Terezinha e Santa Cruz do Xingu permanecem isolados sem acesso pavimentado na ligação com Cuiabá.
VILA RICA – Município com 7.431,481 km², 26.037 habitantes, Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) 0,688 e renda per capita de R$ 16.933,82, Vila Rica é sede de comarca, faz divisa com o Pará, tem um dos maiores rebanhos bovinos do Brasil e a BR-158 a divide ao meio.
Vila Rica se emancipou de Santa Terezinha em 13 de maio de 1986 por uma lei das bancadas do PDS e PMDB sancionada pelo governador Júlio Campos.
SANTA TEREZINHA – Município emancipado de Luciara em 4 de março de 1980 por uma lei do deputado Ricardo Corrêa sancionada pelo governador Frederico Campos, Santa Terezinha pertence a comarca de Vila Rica, tem 6.466,902 km², 8.371 habitantes, o IDH é 0,609 e a renda per capita de R$ 13.890,64.
Santa Terezinha faz divisa com o Tocantins no ponto mais ao Norte da Ilha do Bananal. A pecuária é sua principal atividade econômica.
SANTA CRUZ DO XINGU – Emancipado de São José do Xingu em 28 de dezembro de 1999, por uma lei do deputado Humberto Bosaipo sancionada pelo governador Dante de Oliveira, Santa Cruz nasceu do projeto de pimenta-do-reino Santa Cruz. O município tem 5.651,747 km², 2.564 habitantes, o IDH é 0,684 e a renda per capita R$ 34.487,90.
Santa Cruz faz divisa com o Pará, pertence a comarca de Vila Rica e sua principal atividade econômica é a agropecuária.
FOTOS:
1 – Felipe Barros
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