Situada no centro do continente, cercada por todos os lados pela América do Sul, na cabeceira do Pantanal, Cuiabá foi fundada em 8 de abril de 1719 pelo bandeirante sorocabano Pascoal Moreira Cabral. Esse é o DNA da capital mato-grossense que chega aos 300 anos. Mas, afinal, como é essa cidade?
É hospitaleira, está de braços abertos e ao mesmo tempo mergulhada em problemas.
Com fortes contrastes sociais a capital mato-grossense é mesclada por grandes empresas comerciais e desemprego, por milionários e miseráveis, por modernas avenidas e grilos que se transformaram em bairros, pela paralisação de algumas importantes obras para a Copa do Mundo de 2014 e a falta de indústrias. Enfim, é um centro regional de decisões políticas que completa 300 anos e está bem acima das cidades e aquém das metrópoles.
Rico é rico em qualquer lugar do mundo livre. Pobre é pobre independentemente do regime onde viva. Em Cuiabá, por falta de emprego urbano, homens saem para trabalhar em outros municípios, na construção de barragens, no agronegócio, garimpo, construção civil, transporte etc. Ficam as famílias, o que cria a figura da viúva de marido vivo. Essa é a realidade, em Mato Grosso, onde 155 mil famílias vivem abaixo da linha da pobreza – segundo números repetidos anualmente quando das campanhas natalinas de doação de cestas básicas. A mulher que fica, sobrevive enquanto diarista ou executando outras tarefas. Esse drama social facilita a ação dos traficantes domésticos, que recrutam meninos para o tráfico formiguinha; e abre caminho para a prostituição de meninas na puberdade – também é uma triste avenida que leva ao crime famélico.
Dos grilos surgiram muitos bairros. A maioria continua sem regularização fundiária – verdadeiro nó que ninguém consegue desatar. Isso cria comunidades no segundo andar da legalidade, sem direito sequer a um endereço oficial. A prefeitura cita que existem 281 mil imóveis urbanos, dos quais 226 mil são prediais e 55 mil vagos – nesse universo, aproximadamente 15 mil não têm documentação cartorial.
Entre os magnatas e a periferia sofrida, o povo cuiabano preserva as tradições ribeirinhas das danças seculares do Cururu e Siriri, do artesanato e das festas da idiossincrasia sendo a maior a de São Bendito, o santo negro que é devotado por católicos cuiabanos na mais antiga igreja de Cuiabá e que foi tombada pelo Patrimônio Histórico. Esse templo, na verdade é um puxadinho da Igreja do Rosário e foi construído pra que negros escravos pudessem participar de cerimônias religiosas católicas, já que a Santa Madre e o Poder não permitiam suas presenças ao lado dos brancos devotos e cristãos ardorosos.
Na mesma cozinha o cuiabano de tchapa e crux toma guaraná ralado ao lado do neto miscigenado. Esse netinho prefere o chimarrão que o vovô gaúcho e o pai paranaense sorvem em goladas com a cuia correndo de mão em mão tal qual as prendas que deslizam no assoalho encerado do Centro de Tradições Gaúchas (CTG) ao som de uma boa vanera arrancada de uma acordeona executada por um gateiro de bombacha nascido nos pagos do sul.
A cidade enfrenta graves problemas nos setores de trânsito, transporte, saneamento, segurança pública, habitacional, agrário e com a falta de política para restaurar o casario de seu Centro Histórico. A solução desses problemas passa pela capacidade administrativa do governador Mauro Mendes e do prefeito Emanuel Pinheiro.
Mauro até o momento solucionou apenas a questão da segurança, mas para ele: alugou por R$ 109 mil uma mansão no Alphaville, para abrigar sua escolta policial.
Emanuel chega ao tricentenário de mãos abanando, sem sequer uma obra relevante executada integralmente por sua administração. Mais: convive com fantasmas – um deles o vídeo em que aparece recebendo pacotes de dinheiro, a ponto de um cair do bolso do paletó já abarrotado; a dinheirama foi repassada pelo esquema mais corrupto que se tem notícia em Mato Grosso e que era chefiado pelo então governador Silval Barbosa. Contrito, Emanuel jura que não se tratava de mensalinho, como delatou Silval.
Ainda Emanuel: recentemente o deputado federal Valtenir Pereira (MDB) disse a terrível e desafiadora frase: Emanuel é PHD em roubo – e acresentou: é calculista e maquiavélico.
A Copa é nossa
A escolha de Cuiabá para uma das sedes da Copa do Mundo de 2014 atraiu investidores nos setores da construção civil e hotelaria e o trade turístico vê perspectivas de ampliação do turismo ecológico nos paraísos num raio de 300 quilômetros no entorno da capital, mas não consegue explorar esse nicho. Quem poderia contribuir para tanto é Teté Bezerra, que no ano passado foi nomeada presidente da Embratur pelo presidente Michel Temer, a pedido de seu marido Carlos Bezerra, que controla o MDB mato-grossense. Porém, Jair Bolsonaro, sucessor de Temer, acaba de demiti-la de maneira grotesca, pelas redes sociais, acusando-a de querer promover um jantar de R$ 290 mil. Teté nega. O turismo capenga.
O setor hoteleiro entrou em parafuso. Mais de uma dezena de grandes, médios e pequenos hotéis baixaram as portas em Cuiabá depois da Copa. A cidade não é polo turístico. Mais: polos do agronegócio a exemplo de Rondonópolis, Sorriso, Lucas do Rio Verde, Sinop, Campo Novo do Parecis, Primavera do Leste e Porto Alegre do Norte passaram a promover eventos do turismo de negócios e esvaziam a tricentenária capital.
Para a Copa o setor de trânsito/transporte foi o principal compromisso do governo de Silval Barbosa.
O Corredor Norte-Sul formado pelas avenidas Fernando Corrêa da Costa, Miguel Sutil e Cyriaco Cândia, em Cuiabá, e pela avenida Mário Andreazza, em Várzea Grande virou uma grande via expressa que cruza Cuiabá e Várzea Grande de ponta a ponta. Nesse Corredor a ponte Mário Andreazza, sobre o rio Cuiabá, foi duplicada. A avenida do mesmo nome também. Sua conclusão depende de dois viadutos ou elevados na Fernando Corrêa da Costa, no encontro com a avenida Beira Rio e o cruzamento com a rua Carmindo de Campos. Isso está na mão de Mauro Mendes, já que seu antecessor Pedro Taques nada fez por ele. Sem esse corredor – mesmo inacabado – o trânsito nas duas cidades estaria estrangulado.
Sobre transporte, o veículo leve sobre trilhos (VLT) atormenta o governo e empresários do setor de transporte de passageiros. Previsto para 22 quilômetros de trilhos partindo do aeroporto em Várzea Grande e com uma bifurcação em Cuiabá dando acesso ao Coxipó e ao Comando da Polícia Militar, o VLT descarrilou antes de percorrer o primeiro metro. Falta governo, não há capacidade administrativa e o jogo de interesse por baixo dos panos é uma vergonha.
O desafio do VLT supera a capacidade de questionamento dos ditos formadores de opinião e de movimentação das entidades. Pior: a Assembleia Legislativa, bem ao seu estilo, tira o corpo fora dos compromissos que deveriam pautar sua legislatura.
O saneamento em Cuiabá é vergonha. Aproximadamente 65% do esgoto da cidade são lançados in natura no rio poluindo o Pantanal Mato-grossense. Há carência de redes coletoras de esgoto e de estações de tratamento. A água chega aos domicílios, mas não atende satisfatoriamente a demanda. Até recentemente a rede de água na região central tem 216 quilômetros em amianto cancerígeno. Sem versão oficial a Águas Cuiabá deixa a entender que já substituiu parte desse rede. A prefeitura deu a empresa municipal de água e esgoto – Sanecap – em concessão por 30 anos (renováveis por igual período) à CAB Cuiabá. Para se proteger politicamente do ato, o então prefeito petebista Chico Galindo entrou em férias para que o então presidente da Câmara, enquanto prefeito em exercício, Júlio Pinheiro (PTB), sancionasse a lei da concessão. A manobra de Galindo é o que se chama de “dá o tapa e esconde a mão”. Agora a concessão está em mãos da Águas Cuiabá – muda-se o nome e o problema continua.
ECONOMIA – Cuiabá é centro de prestação de serviço público e da iniciativa privada. A capital tem um distrito industrial e conta com uma usina termelétrica que opera em ciclo integrado a diesel e gás natural, sendo que essa segunda fonte de energia é procedente da Bolívia e chega a Mato Grosso por um gasoduto. Há mais de sete anos a termo enfrenta problema de desabastecimento de gás natural. Cuiabá é polo cervejeiro, mas seu parque industrial é acanhado. O município não figura entre os produtores de soja, algodão, milho safrinha e arroz de sequeiro. Seu rebanho bovino é pequeno.
Arena Pantanal
O governo de Mato Grosso construiu a Arena Multiuso Pantanal – oficialmente Arena Governador José Fragelli – no bairro Verdão, no local onde anteriormente havia o Estádio Governador José Fragelli (Verdão).
A construção da Arena Pantanal foi complexa. Foram gastos em torno de R$ 600 milhões em sua obra. Essa dinheirama não foi devidamente fiscalizada pela Assembleia e o Tribunal de Contas do Estado (TCE).
Em delação premiada o então governador Silval Barbosa disse que pagava mensalinho a deputados e conselheiros do TCE. Em razão disso, desde setembro de 2017 estão afastados do TCE os conselheiros Antônio Joaquim, Sérgio Ricardo, Valter Albano, Waldir Teis e José Carlos Novelli. Todos os acusados negam angelicalmente.
A construção da Arena forçou o governo a alterar a destinação do Fundo Estadual de Habitação e Transporte (Fethab), que antes era aplicado na construção e conservação de rodovias, e em conjuntos habitacionais.
Sem caixa, o governo lançou mão de um naco do Fethab para levar adiante o estádio onde foram disputados quatro jogos na fase inicial da Copa do Mundo.
A Arena Pantanal recebe jogos do Campeonato Brasileiro, Copa do Brasil, Campeonato Mato-grossense, Copa Verde, amistosos nacionais e internacionais, além de ser palco para outros eventos por se tratar de arena multiuso.
Indicadores sociais
O município pantaneiro de Cuiabá tem 3.495,424 km². Faz limites com Várzea Grande, Santo Antônio de Leverger, Chapada dos Guimarães, Rosário Oeste e Acorizal. As rodovias federais 070, 163 e 364 cruzam o perímetro urbano da capital. Cuiabá dista 1.100 quilômetros de Brasília via Campo Verde, Primavera do Leste, Barra do Garças, Goiânia (GO) e Anápolis (GO).
A área metropolitana é uma conurbação com Várzea Grande (as duas cidades são separadas pelo rio Cuiabá). Juntas, têm 889 mil habitantes – Cuiabá, 607.153.
O Produto Interno Bruto (PIB) é 22,2 bilhões. Cuiabá tem boa qualidade de vida e não figura entre os grandes exportadores mato-grossenses.
1970 o ano emblemático para Cuiabá
Em 1970 Cuiabá iniciou o salto que a transformaria de pequena em grande cidade. Mato Grosso despertava atenção em todos os cantos do Brasil por suas terras à espera de colonizadores. Naquele ano, a população da capital mato-grossense era de 100.860 habitantes e, no Estado inteiro, incluindo a área que agora pertence a Mato Grosso do Sul, havia 1.597.090 residentes. Cuiabá carregava o título de “Portal da Amazônia”, rótulo esse que também foi dado a outras cidades amazônicas, para estimular a ocupação do vazio demográfico como parte da política de integração nacional alicerçada no bordão: “Integrar para não entregar”.
A cidade não tinha acesso pavimentado. O asfalto para Campo Grande – agora capital de Mato Grosso do Sul – (BR-163) e Goiás (BR-364) somente chegaria ao final de dezembro de 1972. Essas duas rodovias têm trecho remontado rumo Sul até Rondonópolis. Uma década depois se iniciou a pavimentação da BR-070/174 para Cáceres, Pontes e Lacerda e Rondônia. A BR-163 rumo Norte, para Nova Mutum, Lucas do Rio Verde, Sorriso, Sinop, Itaúba e Nova Santa Helena foi aberta na primeira metade dos anos 1970.
No começo dos anos 1970 Cuiabá tinha telefone interurbano, mas os demais municípios mato-grossenses não contavam com aquele ‘luxo’ para a época. Quem morava fora da capital e precisasse fazer ligação interurbana tinha que viajar para atendido nos postos telefônicos da Telemat em Cuiabá– a estatal que monopolizava o sistema regional de comunicação.
A energia elétrica era assegurada por conjuntos estacionários da à época estatal Cemat, agora privatizada e ainda detentora do monopólio da distribuição da energia no Estado. Os linhões de transmissão entre Cachoeira Dourada (GO) e Cuiabá somente seriam construídos alguns anos depois.
O ano de 1970 também foi de importante conquista universitária para Cuiabá. Em 12 de dezembro, o presidente da República, Emílio Garrastazu Médici, e o ministro da Educação, Jarbas Passarinho, criaram a Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), a Uniselva. O médico cuiabano Gabriel Novis Neves foi o primeiro reitor da UFMT. No campus de Cuiabá (há campi no interior) uma placa mostra a reverência da UFMT com seu primeiro reitor. Nela está escrito: “Cidade Universitária Gabriel Novis”.
As conquistas da pavimentação, da abertura da BR-163 e da criação da UFMT foram decisivas ao crescimento de Cuiabá. A cidade, até então acostumada ao tipo de vida pacato, foi sacudida com a chegada de levas e levas de novos moradores, procedentes dos mais diversos lugares e com pronúncias carregadas com sotaques diferentes. Não houve choque cultural. Ao contrário, além da miscigenação aconteceu a plena identificação entre os anfitriões ditos tchapa e crux e os paus rodados.
Com a invasão dos novos moradores a cidade sofreu grande mudança nos conceitos residenciais. Surgiram os edifícios – até então raros e ocupados por escritórios e hotéis – e os condomínios fechados.
A explosão demográfica sufocou alguns dos costumes, mas a maioria permanece como parte das tradições seculares cuiabanas. À época, na Imprensa nacional não faltavam reportagens narrando a identificação do cuiabano com o guaraná ralado. Repórteres informavam que a cidade acordava ao romper da aurora com o reque-reque-reque-reque da grosa ralando o pau do guaraná. Isso é parte do folclore. Agora, Cuiabá ganha às ruas bem cedo para o trabalho rotineiro, ao som dos veículos, das buzinas e da vibração de sua gente.
O silêncio do reque-reque-reque-reque não impede que todos, independentemente de suas origens, sempre que possível, tomem guaraná ralado industrialmente, sob o calor humano que eleva a temperatura dessa cidade de céu azul de rara beleza e onde as águas do rio Cuiabá passam ficando, igual aos que aqui chegam e comem cabeça de pacu.
Memória
Na segunda década do século XVIII, depois de várias incursões pela região, bandeirantes paulistas descobriram ouro na calha do rio Cuiabá.
A descoberta das minas entusiasmou os bandeirantes paulistas Pascoal Moreira Cabral e Miguel Sutil, que juntos fundaram em 8 de abril de 1719, à margem do córrego da Prainha, a vila que seria Cuiabá.
As minas de Cuiabá receberam o nome de Lavras do Sutil e à época formavam o maior centro de extração do Brasil, o que atraiu aventureiros, comerciantes, mineradores, garimpeiros, farmacêuticos, prostitutas, religiosos, lavradores, pecuaristas, educadores, marinheiros, caçadores, ferreiros, oleiros, carroceiros, advogados, médicos e outros, que formaram a base populacional cuiabana.
Em 1º de janeiro de 1727, Cuiabá foi elevada à condição de vila pertencente à Capitania de São Paulo, com o nome de Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá. Em 9 de maio de 1748 é criada a Capitania de Mato Grosso desmembrada de São Paulo. Em 17 de setembro de 1818 Cuiabá ganhou status de cidade. Em 28 de agosto de 1835 tornou-se capital de Mato Grosso, condição essa que até então pertencia à Vila Bela da Santíssima Trindade, na fronteira com a Bolívia.
Eduardo Gomes – blogdoeduardogomes
FOTOS:
1, 2, 3, 5, 6, 9, 10, 13, 14, 15, 16 e 19 José Medeiros
4, 8 e 20 Fablício Rodrigues
7 – blogdoeduardogomes sobre imagem da TV Globo
11 – blogdoeduardogomes em arquivo
12 – Édson Rodrigues
17 e 17 Museu da Imagem e do Som de Cuiabá
Excelente, real, verdadeira e contundente. E o retrato desta terra apegadia e que sofre como todo o Brasil pela incúria e vítima de tantos erros e equívocos. Meu caro Eduardo, meus parabéns pela excelência do texto.
Renato Gomes Nery – advogado, ex-presidente da OAB/MT – Cuiabá – via Facebook