Eduardo Gomes
@andradeeduardogomes
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Texto de minha autoria publicado e postado originalmente no Diário de Cuiabá www. diariodecuiaba.com.br
Com as mãos trêmulas e o coração disparado a matriarca Joana Roylê Kanela, 79 anos, recebeu da neta, a professora Junrê Kanela, uma cópia da portaria da Funai datada de 17 deste mês de novembro, reconhecendo como Terra Indígena Kanela do Araguaia, uma área em Luciara e São Félix do Araguaia, onde aquele povo é aldeado. Dona Joana chorou e com ela toda a sua gente. Suas lágrimas de felicidade juntaram-se às águas esverdeadas do rio Tapirapé e correram para o Araguaia comemorando a conquista de um território sonhado há mais de 80 anos para ser a casa, o quintal, o campo de caça, o celeiro de pesca e o universo para 1.100 indivíduos Kanela dispersos nas aldeias São Pedro, Bom Jesus, Porto Velho, Nova Pukanu e Kriimpeg. Tomada pela emoção, com as mãos ainda guardando calos da vida dura no campo e sem palavras, dona Joana balbuciava em seu coração, para si: Pahpãm tahnã impeaj!
Na tradução livre para o português, a expressão da matriarca dos Kanela é um sentimento de gratidão: Obrigado meu Deus! A portaria assinada pela presidente da Funai, Joenia Wapichana, reconhece que a área é de 15.106,78 hectares sobre as glebas contíguas São Pedro, Tapirapé 1, Tapirapé 2, Tapirapé 3, Tapirapé 4 e Tapirapé 5 em Luciara e São Félix do Araguaia, sendo que no segundo município a extensão é de 56 hectares é território do povo Kanela do Araguaia.
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O reconhecimento pela Funai é um dos últimos passos burocráticos para a documentação que homologa a terra do povo Kanela com registro em cartório. Daí a felicidade da matriarca, que chegou nos braços da mãe à região, fugindo de fazendeiros que os expulsaram da aldeia Porquinhos, em Barra do Corda, no Maranhão.
Povo pacífico e de boa convivência os Kanela fugiram do Maranhão para Miracema do Norte, em Goiás, que ganhou o nome de Miracema do Tocantins, quando do desmembramento goiano para a criação daquele estado. De Miracema chegaram a Luciara, diante da Ilha do Bananal, no final dos anos 1940, quando a cidade não passava de um amontoado de casebres à margem do Araguaia, num ponto perdido do município de Barra do Garças, sem nenhuma estrutura para ser distrito e cujo nome era Mato Verde.
Arredios pelo sofrimento que enfrentaram em seu berço, no Maranhão, assustados e em busca de um pedaço de terra para chamar de seu, os Kanela juntaram-se aos moradores do lugar e aos Karajá, aldeados próximo à vila e na Ilha do Bananal. Tanto eles, quanto os Karajá e os poucos ribeirinhos tinham um medo em comum: os Caiapó, da região do rio Xingu, mas que tinham área de perambulação em Luciara e que eram considerados violentos.
Mato Verde, a primeira povoação urbana na área chamada Norte Araguaia, foi fundada pelo pecuarista e aventureiro goiano Lúcio Pereira da Luz, em 10 de maio de 1934 e nos primeiros anos não tinha estilo de vida urbana. As poucas famílias que ali residiam viviam da pesca, do extrativismo e da caça. Alguns barcos que navegavam pelo Araguaia aportavam em seu cais improvisado e os moradores e navegantes faziam escambo. Porém, lentamente foram chegando mais residentes. Os Kanela e os locais miscigenaram, formando a base da população agora identificada como luciarense.
Em 12 de julho de 1961, o povoado de Mato Verde foi elevado a distrito da Barra e em 11 de novembro de 1963 emancipou-se tornando-se sede do município de Luciara. A mudança da denominação foi em homenagem ao fundador do lugar; a palavra Luciara é a junção de Lúcio com Araguaia e quem lançou a luta pela emancipação foi o cartorário na Barra, líder político, escritor e deputado estadual Valdon Varjão, famoso por criar o Discoporto da Barra.
Lúcio Pereira da Luz, o colonizador, foi o primeiro prefeito de Luciara, cuja população é tradicional e com pouca renovação. Tanto assim, que José Liton, filho do colonizador, e sua filha Noely Paciente Luz, sua neta, também foram prefeitos do município.
Mesmo integrados à população de Mato Verde, os Kanela sentiram que precisavam deixar a zona urbana e partiram em busca de um território; eles o encontraram à margem do rio Tapirapé, afluente do Araguaia. À época, a região era desabitada e as terras, praticamente todas, devolutas.
Em 2013, com o povo Kanela vivendo em paz, uma liminar da Justiça os expulsou da área onde estavam aldeados. Os mais velhos reviveram o drama que enfrentaram no Maranhão e que os forçou a vir para Mato Grosso. Porém, um ano depois foram realocados no local onde estavam e que se encontram agora.
Povo evoluído, com vários jovens orgulhosos de seus diplomas universitários e com parte de sua juventude matriculada em cursos no campus da Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat) em Luciara, os Kanela durante muitos anos conviveram com a dualidade de não serem donos de uma área para aldeamento numa região onde nos anos 1960 e 1970 o governo federal pela Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), não somente distribuiu glebas para grandes empresários, como injetou financiamentos ‘de pai para filho’ nos projetos agropecuários que desenvolviam. Dentre os contemplados com a dinheirama do governo, Sílvio Santos – o Homem do Baú – e Wagner Canhedo, que simplesmente foi dono da Vasp.
O sonho com a titulação do território sempre está presente em todos e mobiliza os adultos, tendo à frente o líder João da Vitalina, que preside o Conselho dos Anciões de sua aldeia, composto por 13 indivíduos, e que por três vezes foi vereador em Luciara, mas que deixou a política partidária de lado para peregrinar por gabinetes em Cuiabá e Brasília em busca da legalização da terra de seu povo.
João da Vitalina preocupa-se com a cultura de seu povo. Ele é grato ao governo estadual que criou na aldeia São Pedro, onde é aldeado, uma sala em anexo da Escola Estadual Juscelino Kubitschek, de Luciara, que tem 80 adolescentes matriculados, e ao município, que ali instalou a Escola Municipal São Bento, com 22 matrículas. Porém, ele cuida para que os alunos não se fechem somente no ensino curricular. João da Vitalina os quer plenamente identificados com sua cultura. “Não basta ao jovem Kanela aprender somente matemática, geografia e ou ciência. Ele tem que saber como viver na natureza do mesmo modo que seus ancestrais viveram e vivem, conhecer a planta comestível e a venenosa, pisar longe do alcance do bote da cobra, distinguir entre um ipê e um angelim pedra, uma matrinchã e um pintado ou um tucunaré, entre o jenipapo e o urucum, entre as penas que servem ou não para cocar”.
A citação do jenipapo e do urucum é um mergulho na cultura Kanela. O primeiro é a fonte para a principal pintura corporal das mulheres e dos homens; o outro, com seu vermelho carmim, aplicado para demonstrar a garra da etnia quando de discussões em Brasília e outras localidades.
A cultura Kanela é repassada oralmente não somente por João da Vitalina, mas por todos. Na aldeia São Pedro, o cacique Pedro Filho participa e incentiva todas as manifestações culturais.
O cacique geral Antônio Tiaka é um disciplinador do tradicionalismo. A etnia mantém seus ritos ancestrais, mas foi dividida pela religiosidade, com indivíduos católicos, assembleianos e adventistas, mas todos, independentemente do credo chamado missionário, participam dos ritos Kanela, e no próximo 10 de dezembro haverá três casamentos de jovens pelos rituais étnicos de seu povo.
Antônio Tiaka preocupa-se com a condição de saúde de seu povo, que vive numa área com predominância de varjões preservados, mas cercada por fazendas do agronegócio que aplicam agrotóxico em suas lavouras. Segundo ele, há somente um pequeno posto de saúde em sua área, que é atendido por um enfermeiro e que conta com um carro para transporte para tratamento no Hospital Municipal João Abreu Luz, de São Félix do Araguaia, distante 190 km por estrada encascalhada.
CAUTELA – Os Kanela aguardam pela criação de um Grupo de Trabalho (GT) da Funai, para efetuar o levantamento topográfico da área e fazer um inventário antropológico como parte do processo burocrático para que a documentação seja chancelada pelo presidente Lula Silva. A cautela é por conta da reação em cadeia pelos poderes políticos, que tentam na Justiça barrar a demarcação de várias terras indígenas em Mato Grosso, mas em situação bem diferente da sua, mas que nem por isso a deixa fora de questionamento, sobretudo por fazendeiros da região.
O governador Mauro Mendes (União) interpela judicialmente o recente decreto que amplia as terras indígenas Estação Parecis, em Diamantino; Manoki, em Brasnorte; e Uirapuru, em Campos de Júlio, Nova Lacerda e Conquista D’Oeste. Na Assembleia Legislativa o deputado Júlio Campos (União) determinou que a assessoria Jurídica estude uma ação para ser ajuizada contra o decreto de Lula. Ou seja, nada por enquanto contra os Kanela, mas é recomendável toda a prudência sobre o caso.
A pressão contra a ampliação de terras indígenas levou a Brasília, para uma audiência com o ministro Gilmar Mendes (STF), os deputados Eduardo Botelho (União) e Janaína Riva (MDB); o prefeito de Brasnorte, Edelo Ferrari (União); e os presidentes Vilmondes Tomain (Famato), Lucas Beber (Aprosoja) e Léo Bortolin (AMM). Gilmar Mendes é mato-grossense de Diamantino.
Na Assembleia Legislativa, o deputado Gilberto Cattani (PL) apresentou uma Moção de Repúdio contra o presidente Lula da Silva pelos recentes decretos que aumentam áreas indígenas. Os deputados aprovaram a moção e paralelamente a isso o líder do governo, Dilmar Dal Bosco (União) fez um duro pronunciamento contra a decisão presidencial.
Na avaliação de João da Vitalina a documentação deverá ser expedida “sem problema”. O líder Kanela observa que tanto seu povo quanto os pioneiros na região de Luciara ocuparam vazios demográficos e que juntos, cada um em seu estilo de vida, incorporaram mais um município ao território mato-grossense. Ele destaca que seu povo tem participação histórica no processo político, social e econômico de seu município.
O povo Kanela tem representação política. A Câmara de Luciara é composta por nove vereadores, dos quais, quatro são daquela etnia: Rai Silva dos Santos, o Rai Kanela (União); Ana Cláudia Pereira de Souza, a Cláudia Kanela (PSB); Roberto Silva dos Santos, o Roberto Curicaca (União); e Julião Silva Cruz Neto (MDB). A representação política Kanela é proporcional ao espaço que ocupa no contexto populacional luciarense. O município tem 2.616 residentes, dos quais 1.100 Kanela, número que responde por 42% dos habitantes.
FESTA – Os festejos Kanela são abertos a todos, indistintamente, mas alguns ritos são reservados àquele povo e, outros, restritos aos anciãos. A primeira festa anual é o Ritual do Porcão; em maio acontece o Ritual das Guerreiras; em junho é tempo do Ritual da Mandioca, celebração da fundação da aldeia Nova Pukanu e o Ritual da Passagem das Crianças; em julho o povo Kanela se reúne para a grande celebração da etnia; em setembro, há três eventos: Ritual da Tartaruga e das Flores, e o Ritual dos Guerreiros; em novembro os Kanela fazem o Ritual da Chuva.
A etnia também se reúne para velórios e casamentos. Os mortos são reverenciados durante três dias, mas quando se trata de falecimento de ancião, o luto se estende por sete dias. Os matrimônios acontecem durantes os festejos tradicionais.
Fora das aldeias, os Kanela participam da vida social da região. Em Luciara, onde o Araguaia é um cartão-postal com suas águas azuis e praias com areia infinitamente branca e fina, jovens da etnia disputam partidas de futebol com colegas da cidade, sob o olhar vigilante do busto do colonizador Lúcio Pereira da Luz, enquanto confiantes esperam pela terra que lhes dará a plena cidadania de Kanela do Araguaia.
Fotos: Divulgação