O menino que queria ser governador

Eduardo Gomes

@andradeeduardogomes

eduardogomes.ega@gmail.com

Júlio Campos, o menino que sonhava

A vontade do menino Júlio Campos de ser governador quase virou obsessão em razão do cenário que surgiu em 1960. O governador João Ponce de Arruda e o prefeito de Várzea Grande, seo Fiote Campos, eram amigos, dividiam o palanque. Certa vez o governante deixou-se seduzir por dois olhos verdes e o sorriso estonteante de uma morena arrasa-quarteirão, de cintura fina, lábios carnudos, bunda torneada, coxas grossas e seios de atriz de Hollywood. Os poucos que a conheciam chamavam-na de Coqueirinho e ela morava numa chácara na região conhecida como Suíço, agora rebatizada Jardim Potiguar. Aos sábados, Ponce de Arruda desfrutava horas em seus braços, sem pressa que o tempo passasse.

Ponce de Arruda

O apaixonado Ponce de Arruda morava na Residência Oficial, no centro de Cuiabá, e seguia para Várzea Grande no banco traseiro do automóvel Studebaker, preto, com placa de bronze privativa do governante. Em Várzea Grande o carro oficial era deixado com o motorista uniformizado e o ajudante de ordens, major João Franchi, na porta da prefeitura. Sozinho, ao volante da Rural Willys de seo Fiote, Ponce de Arruda corria para os braços da amada.

Uma, duas, três, quatro vezes Júlio Campos viu o carrão estacionado, tomou coragem e pediu ao amigo de seu pai que permitisse o motorista dar umas voltas com ele. Sorrindo, o governador autorizou que o menino passeasse enquanto tivesse vontade e a gasolina desse.

Para um menino que sonhava em ser governador, nada melhor do que percorrer sua cidade, no banco traseiro do veículo oficial  conduzido por um chofer uniformizado e um ajudante de ordens fardado, no banco dianteiro. Estampando um largo sorriso na cara de felicidade, Júlio Campos, cruzava Várzea Grande de ponta a ponta, acenando para os conhecidos. “Xia, eh demáx esse D’julinho”, diziam alguns colegas de futebol.

Júlio Campos sonhava com o governo, mas não imaginava que duas décadas depois subiria as escadas do Palácio Paiaguás para receber a faixa governamental. Se o ajudante de ordens major João Franchi sonhava com mandato eletivo não se sabe, mas João Ponce tinha um plano político para ele, e o elegeu deputado estadual em 1966.

 

O menino sonhador

Várzea Grande, 3º Distrito de Cuiabá. A temperatura é alta apesar do vento que sopra levantando poeira na avenida Couto Magalhães, sem iluminação e praticamente sem trânsito. Na casa 22, o jovem casal Campos aguarda pelo nascimento do primeiro filho. A numeração do domicílio dos Campos foi mudada; recebeu o número 1.686 e tornou-se sede da Fundação Júlio Campos.

Sala em silêncio cortado por barulhos distantes do quarto ao lado. Júlio Domingos de Campos, o seo Fiote, esfrega as mãos frias. A garganta está seca. Os olhos percorrem o forro da casa como se buscassem algo ou alguma resposta. Nervoso, passa a mão pelo queixo, com força. A espera era angustiante, parecia eternidade para ele, estreante na paternidade com 29 anos.

Depois de algum tempo sozinho e meditando seo Fiote escuta o que mais gostaria de ouvir naquele momento: o choro de um recém-nascido. Seu rosto tenso cede lugar ao semblante alegre.

O choro cessa. A porta do quarto abre-se. Dona Dionísia de Miranda, a parteira de mão cheia do distrito sem maternidade sai com um largo sorriso e diz:

– É homem, xomano. Seu filho acaba de nascer!

Emocionado seo Fiote entra no quarto. Dona Amália, a mãe do menino, é a imagem da felicidade e troca olhar de ternura com o marido:

– Nosso filho nasceu saudável, com a bênção de São José e de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro.

Sem palavras, seo Fiote afaga os cabelos de dona Amália e de leve passa o indicador direito na face do filho, faz vaivém para cima e para baixo num carinho paterno que substitui qualquer palavra ou frase.

Minutos depois, de volta à sala, seo Fiote contempla uma folhinha de parede com a foto do Sagrado Coração de Jesus. Observa bem a data: Quarta-feira, 11 de dezembro de 1946. Naquele dia nasceu seu primogênito, que se chamaria Júlio Domingos de Campos Filho, mas que teve o nome mudado pela mãe. Na primeira gravidez, dona Amália enfrentou problemas de saúde por conta da gestação. Devota de São José, prometeu ao Santo Carpinteiro pai de Jesus, que se o parto não tivesse intercorrência e nascesse um menino ele teria nome composto: chamaria Júlio, em homenagem ao pai, José em agradecimento ao protetor e de Campos por ser o sobrenome familiar. Assim nasceu Júlio José de Campos.

A parteira avisa que daria o primeiro banho no recém-nascido. Com todas as portas e janelas fechadas para impedir a entrada das correntes de ar, dona Dionísia bota o recém-nascido numa banheirinha, o lava rapidamente e o enrola numa manta azul, bordada a mão. A parteira nunca comentou o que aconteceu em seguida, mas também não desmentiu a versão apresentada por Chico Monteiro, parente e amigo do casal Campos. Chico Monteiro dizia que ao invés de chorar, Júlio Campos sorriu e que ao pé do ouvido da parteira pediu voto pela primeira vez.

Chico Monteiro

Chico Monteiro era o nome político de Antônio Francisco Monteiro, advogado e servidor da Assembleia Legislativa, que morreu em 20 de maio de 2023  e que foi prefeito de Nossa Senhora do Livramento e deputado estadual.  Contemporâneo de infância de Júlio Campos, Chico Monteiro contava essa proeza, com riqueza de detalhes, sempre citando o testemunho de várzea-grandense já falecido.

Ao término do resguardo de dona Amália, o menino foi batizado pelos padrinhos Vitorino Monteiro da Silva, o seo Neno, e sua mulher, dona Elvira Leite Monteiro da Silva.

Júlio Campos foi crismado pelo bispo Dom Orlando Chaves, que era amigo de seo Fiote e demonstrava gratidão a ele, que na condição de prefeito de Várzea Grande doou o terreno para a construção do Seminário Arquidiocesano Cristo Rei, naquela cidade.

De casa para a escola. Júlio Campos foi matriculado no Colégio Adventista de Várzea Grande, com a professora Vanil Stabilito. O Primário, que era o curso da arrancada dos alunos, foi na Escola Estadual Pedro Gardés (1953/1957); ao término do curso Júlio Campos fez o Exame de Admissão ao Ginasial, foi aprovado e em 1958 matriculado no Colégio Salesiano São Gonçalo, em Cuiabá; em 1961 ao concluir o Ginasial Júlio Campos teve direito a diploma de formatura.

À época do curso Ginasial, o transporte de passageiros de Várzea Grande para Cuiabá e vice-versa era precário e feito por apenas um ônibus, apelidado de Marupiara, do empresário José Vitor.  Seo Fiote tinha uma reluzente Rural Willys  e o compromisso diário, do motorista Caraca, de segunda a sexta-feira era transportar Júlio Campos e sua irmã Doralice, para a escola.

Júlio Campos sonhava acordado com futebol e fundou o Fluminense Futebol Clube, de Várzea Grande; seu time batia bola e disputava amistosos no campinho no pátio da Igreja Nossa Senhora do Carmo. Menino, reunia seus jogadores para preleções antes das partidas; inconscientemente, com a firmeza e objetividade de sua fala, Júlio Campos precocemente exercitava sua veia política. Além das peladas com os amigos, Júlio Campos também participava do cotidiano da criançada, subindo em árvores e pegando manga nos quintais, o que às vezes resultava em quedas.

O pôster presente de Filinto Müller

Sua paixão pelo Fluminense das Laranjeiras praticamente nasceu com ele e foi reforçada em 1960, quando ganhou do senador Filinto Müller um pôster do seu Tricolor, que naquele ano conquistou o Campeonato Carioca com um elenco fabuloso treinado por Zezé Moreira.

O pôster, colorido, foi encartado nas páginas centrais do Jornal do Brasil, com a equipe campeã: EM PÉ (e/d): Clóvis, Jair Marinho, Edmilson, Altair, Castilho e Pinheiro. AGACHADOS (e/d): Maurinho, Paulinho, Valdo, Telê Santana e Escurinho.

Filinto Müller e o pôster

Durante muitos anos o pôster permaneceu sobre a cabeceira de sua cama. Depois, para preservá-lo, foi dobrado e guardado num revestimento plástico, como relíquia de um grande time e de um presente extraordinário recebido do grande líder Filinto Müller.

A escola e o futebol preenchiam parte de sua vida enquanto ele sonhava sem revelar para ninguém, que seu desejo era ser padre. Tanto assim que foi coroinha do padre Humberto Paranoto, na Igreja Nossa Senhora do Carmo, época em que a missa era celebrada em latim com o sacerdote de costas para os fiéis. Na medida em que os anos avançavam e a adolescência chegava, Júlio Campos deixou de se imaginar sacerdote ordenado por bispo e à frente de uma igreja.

Em 1960 Várzea Grande era uma cidade nova, com 10.834 habitantes, isolada. Júlio Campos estudava em Cuiabá, mas tinha pouco contato com a população cuiabana. Cumpria um rígido ritual de chegar, assistir às aulas e retornar com Doralice e o pontual Caraca. Sua sede em aprender era grande. Buscava conhecimentos gerais além da grade escolar. Seo Fiote era prefeito do município pela segunda vez (a primeira foi no período de 1951 a 1953) e tinha a mente arejada, enxergava muito além de seu tempo; ao contrário do costume da época, o pai de Júlio Campos não somente permitia que o filho estivesse ao seu lado quando conversava com adultos, mas, também,  o incentivava para que participasse das conversações.

Fernando Corrêa da Costa

O gabinete do prefeito Fiote Campos tornou-se uma escola de excelência para Júlio Campos aprender conhecimentos gerais ouvindo grandes líderes políticos mato-grossenses que visitavam seu pai, e dentre eles, Filinto Müller, Licínio Monteiro da Silva, João Ponce de Arruda, Fernando Corrêa da Costa, Gastão Müller, Nhonhô Tamarineiro, Joaquim Nunes Rocha, Iosihua Matsubara (Paulo Japonês), Valdon Varjão,  Garcia Neto, Bento Machado Lobo, Aecim Tocantins, Vicente Vuolo, Zelito Dorileo, Heronides Araújo, João Marinho Falcão, Archimedes Pereira Lima, Antônio Bastos Pereira, Ana Maria Couto, Satiro Pohl Moreira de Castilho, Augusto Mário Vieira, Oscar Soares, Ramis Bucair, Ubaldo Monteiro, Cacildo Hugueney, Aníbal Bouret, Sarita Baracat, Emanuel Pinheiro da Silva Primo, Luthero Lopes, Gonçalo Romão de Figueiredo, Gabriel de Mattos Müller, Rubens dos Santos, Renê Barbour, José Rachid Sobrinho, Joaquim Francisco de Assis, João Batista de Almeida, Anfilófio de Souza Campos, Ulisses Teodoro de Freitas, Alves de Oliveira, Apolônio Bouret de Melo, Waldebran Moraes Coelho, Milton Figueiredo, Guilherme Meyer e outros grandes vultos.

As verdadeiras aulas sobre a vida, economia e política que Júlio Campos recebeu no gabinete de seo Fiote foram importantes para sua formação política e visão de estadista. Com elas aprendeu que mesmo Várzea Grande estando no centro de Mato Grosso, seu isolamento era visível e resultante do vazio demográfico estadual em razão da falta de cidades e da ausência de uma política de integração regional. Tudo isso fico claro em sua mente, pois somente cruzavam as ruas várzea-grandenses as pessoas que dirigiram-se a Porto dos Gaúchos, Nossa Senhora do Livramento, Poconé, Cáceres, Vila Bela da Santíssima Trindade, Rosário Oeste, Nobres, Diamantino, Alto Paraguai, Nortelândia, Arenápolis e Barra do Bugres, que juntamente com Aripuanã eram os únicos municípios do Nortão, faixa de fronteira, Chapadão do Parecis e da Bacia do Rio Cuiabá, com acesso rodoviário por Várzea Grande; não havia rodovia de acesso a Aripuanã.

Um desbotado mapa de Mato Grosso anterior à  criação de Mato Grosso do Sul, ocupava um canto de uma das paredes do gabinete de seo Fiote. Em meio às discussões, às vezes Júlio Campos ouvia referências sobre a territorialidade mato-grossense. Na ponta dos pés, procurava o rio São Manuel, citado por alguém, ou Vila Bela da Santíssima Trindade, a primeira capital. Imaginava como seria difícil morar em regiões desabitadas e distantes de Várzea Grande.

Além do pequeno trânsito estadualizado, por Várzea Grande passavam também verdadeiros aventureiros que dirigiam-se a Porto Velho, no Território Federal de Rondônia, pela recém-construída BR-364 (nova nomenclatura da BR-29), acompanhando o trajeto da linha de transmissão do telégrafo construída no começo daquele século pelo Marechal Rondon, e que cruzava Diamantino, Padronal, Barracão Queimado, Vilhena, Pimenta Bueno, Vila Rondônia (mais tarde Ji-Paraná), Jaru e Ariquemes. Em pontos estratégicos do percurso o Marechal Rondon construiu estações telegráficas, que foram importantes para assegurar a presença humana na região.

Atento a tudo e a todos, Júlio Campos ouvia os grandes vultos mato-grossenses, e sempre encontrava uma brecha para fazer alguma pergunta. Os presentes discutiam sobre o amanhã de Mato Grosso e Júlio Campos redobrava a atenção sobre o que ouvia relativo a projeções, planos e projetos. Seo Fiote sentia-se orgulhoso, no melhor sentido da palavra, ao ver o primogênito participando das discussões. Quando a sós, pai e filho analisavam as falas dos que frequentavam o gabinete do prefeito várzea-grandense. Sem que notasse, o menino adquiria maturidade e conhecimento sobre seu estado.  Ouvindo, Júlio Campos avaliava o pensamento de todos, mas de modo especial o que era dito pelo pai, que fazia de seu gabinete uma área de civilidade para a discussão política, com respeito entre as partes. Assim, o filho aprendeu de berço que política é a arte de ouvir, de tentar compreender e respeitar o oposto. Junto ao aprendizado nasceu nele a vontade de governar Mato Grosso, pelo que ouvia nas reuniões de seu pai com o governador e correligionário do PSD, João Ponce de Arruda.

Os conhecimentos gerais faziam de Júlio Campos uma criança diferenciada, mas sem afastá-lo do mundo infantil, onde crescia, com as canelas esfoladas pelo futebol, com a pela torrada pelo sol da tarde nos banhos junto com a criançada no Tanque do Fancho e enfrentando os problemas de saúde comuns às crianças de então, como sarampo, caxumba e catapora, mas com os pés e os dedos sem bicho de pé, pois segundo ele, dona Amália era extremamente zelosa com a casa e o quintal, e usava seu saber acadêmico em Enfermagem, para cuidar da filharada.

Dona Dionísia de Miranda tem a memória preservada com uma rua que leva seu nome em Várzea Grande. O padrinho Vitorino Monteiro da Silva virou nome de escola estadual no CPA IV, em Cuiabá, e a madrinha Elvira Leite Monteiro, rua no bairro Costa Verde, em Várzea Grande. A professora Vanil Stabilito denomina uma escola estadual em Várzea Grande. Júlio Campos sempre encontra um meio para homenagear as figuras importantes em sua vida. O sentimento de gratidão é a base de seu DNA. 

2018 – Entrevistando Júlio Campos

PS – Segundo capítulo do livro de minha autoria, cujo título mantenho em sigilo para não esvaziar o anúncio da publicação. A obra está em fase de revisão; trata-se da biografia não autorizada de Júlio Campos apurada pelo autor ao longo de décadas no jornalismo paralelamente ao caminhar político do personagem, que sem dúvidas é referência na vida pública mato-grossense. Porém, o objetivo não é biográfico no sentido mais profundo da palavra, mas sim de mostrar em linhas gerais que boa parte da história recente da Terra de Rondon passa direta ou indiretamente pelo menino que passeava pelas ruas de Várzea Grande no Studebaker de Ponce de Arruda sonhando em ser governador e que transcorridos 65 anos continua mergulhado no mundo político, mas não com a visão infantil e sim com a experiência que o sobe e desce da vida ensinou-lhe.

 

 

Comentários (5)
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  • Coronel Walter de Fátima

    Belíssimo texto… que memória prodigiosa !…

    Coronel Walter de Fátima

  • Jornalista Inácio Roberto

    Compartilhado aqui nos grupos

    Jornalista Inácio Roberto – Água Boa

  • Maria Eunice

    Brigadeiro, seu texto é espetacular e parabéns ao Dep. Júlio pela história de vida

    Maria Eunice – Várzea Grande

  • Dulce Lábio

    A História de Mato Grosso contada por quem a viveu e vive! Uma aula, viva, atualizada, e com direito a requintes poéticos…grande Brigadeiro.

    Dulce Lábio – Escritora, poetisa e empresária – Cuiabá

  • Dalva Peres

    Que história bonita

    Dalva Peres – vereadora e ex-prefeita de Cocalinho