Grande ponte liga o nada a lugar nenhum

Eduardo Gomes

@andradeeduardogomes

eduardogomes.ega@gmail.com

 

As bandeiras mostram onde fica cada estado

Simplesmente a maior ponte de Goiás e Mato Grosso liga o nada a lugar nenhum. Com 1.100 metros de extensão sobre o rio Araguaia, com vão central de 131 metros e 31 metros acima do nível das águas, a gigantesca ponte estaiada nos mostra três facetas do Brasil chapa branca: a capacidade para construir uma monumental obra da engenharia civil; a falta do princípio federativo; e a incúria administrativa do governo de Mauro Mendes.

A ponte foi projetada para ser o ponto alto do corredor de exportação e de integração interestadual entre o Vale do Araguaia do lado mato-grossense e Gurupi (TO), onde a Ferrovia Norte-Sul instalou um terminal ferroviário para embarque de commodities agrícolas.

O corredor é parte de um modal de transporte rodoferroviário; em Mato Grosso sua extensão é de 200 km de estrada vicinal ligando a BR-158, em Ribeirão Cascalheira, ao distrito de Luiz Alves, de São Miguel do Araguaia (GO) e Gurupi (TO); nos dois outros estados o trajeto é de 250 km pavimentados.

A ponte custou 200 milhões de reais ao Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit). Sua construção foi idealizada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, que em julho de 2020 assinou a ordem de serviço para a obra. Bolsonaro não conseguiu concluir a construção, mas a deixou praticamente pronta, porém ainda falta o aterramento para o encabeçamento do lado mato-grossense.

Nenhum governante construiria uma ponte com 1.100 metros de extensão simplesmente para ligar as margens do rio, se a mesma não tivesse destinação estratégica. A ponte que por força da incompetência administrativa liga o nada a lugar nenhum é chamada de Ponte de Luiz Alves, mas oficialmente não recebeu denominação.

O que aconteceu

 

Se houvesse harmonia federativa e capacidade administrativa em todos os níveis, os governos federal e estadual (de Mato Grosso) teriam trabalhado simultaneamente na construção da ponte e na pavimentação do trecho de 200 km nos municípios de Ribeirão Cascalheira e Cocalinho, ande ao invés de rodovia há somente estrada vicinal. As duas obras poderiam ter sido concluídas na mesma data e com elas a economia mato-grossense ganharia um modal de transporte rodoferroviário começando em Ribeirão Cascalheira e avançando até os trilhos da Ferrovia Norte-Sul, em Gurupi, de onde as commodities seriam transportadas em vagões, para o porto de Itaqui, em São Luís (MA).

Artimanhas

 

A ponte que liga o nada a lugar nenhum foi construída como obra de arte da BR-080. Acontece que do lado mato-grossense esta rodovia não existe em Ribeirão Cascalheira e Cocalinho, nem físicamente nem no campo da nomenclatura. Não houve preocupação de Brasília e de Cuiabá para a formalização da rodovia. Diante disso, o governo federal faz de morto e Mauro Mendes desconversa. Em Mato Grosso todos os que bebem água sabem que o governo estadual assumiu a BR-163 em concessão, de rio Correntes, em Itiquira, na divisa com Mato Grosso do Sul, a Sinop. Mas sobre o corredor da ponte que liga o nada a lugar nenhum, certamente, entre quatro paredes a frase mais ouvida foi: assunto do Araguaia, que o Araguaia resolva.

Mauro Mendes desviou o olhar para não ver o Araguaia, pois se o visse, se sentiria obrigado pela realidade dos fatos, a  articular com o governo federal a estadualização do trecho – ora municipal e à espera da BR-080 – até a barranca do Araguaia e, no trajeto – que cruza a vila Berrante (de Ribeirão Cascalheira) construir uma ponte sobre o rio das Mortes. A falha não é somente do governante – a legislatura estadual instalada em 2019 não teve força suficiente para cobrar a criação do corredor, e o mesmo fez a bancada federal. Sobre a Assembleia Legislativa é preciso destacar que somente o deputado Dr. Eugênio (PSB) cobrava a cristalização da BR-080 no trecho. Domiciliado em Água Boa, município do Vale do Araguaia, Dr. Eugênio defendia a lógica administrativa para o corredor rodoferroviário, mas pregava no deserto diante da indiferença dos demais parlamentares, todos de outras regiões.

A verdade

Bolsonaro fez pouco por Mato Grosso. Sua grande obra é a ponte liga o nada a lugar nenhum. Pior para o mato-grossense, que sabe da ausência do governo federal na era Bolsonaro e que recebe a grande ponte inútil no momento, como sendo um atestado da incompetência.

Corredor

O corredor rodoferroviário que a ponte concluída sobre o Araguaia e a pavimentação em Mato Grosso criarão, dará um grande ganho logístico para Ribeirão Cascalheira, Cocalinho, Bom Jesus do Araguaia,  Serra Nova Dourada, Porto Alegre do Norte, Canabrava do Norte,  São Félix do Araguaia (no distrito de Espigão do Leste), Canarana e adjacências. A área que será diretamente beneficiada é um importante polo de produção de soja, milho safrinha e algodão; tem um expresivo rebanho bovino, opera plantas frigoríficas bovinas; e produz etanol e biodiesel.

 

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……

Derrota

A não pavimentação do trecho em Mato Grosso está consumada nos mandatos do presidente Lula e de Mauro Mendes, que terminam em 31 de janeiro de 2026. A obra sequer é citada nos planos dos dois governos para 2025. No melhor dos cenários – ou dos mundos – ainda que a mesma começasse em 2026 não haveria tempo para sua conclusão. Além da extensão de 200 km e da ponte sobre o rio das Mortes, o trecho de 120 km entre a vila Berrante e a divisa com Goiás, no rio Araguaia, é inundável e fica encoberto pelas águas em alguns pontos, entre dezembro e março – é muito parecido com a topografia da Rodovia Transpantaneira, em Poconé – esse fato reduz o período dos trabalhos de engenharia ao longo do ano.

Para melhor entendimento: em Mato Grosso o trecho de 200 km onde deverá ser implantada a BR-080 abrange dois municípios: Ribeirão Cascalheira e Cocalinho. Em Ribeirão Cascalheira sua extensão é de 80 km, da cidade à vila Berrante, na margem do rio das Mortes, que faz o limite com Cocalinho, e neste município, de 120 km até a divisa com Goiás, no rio Araguaia, em Luiz Alves.

Cocalinho tem topografia plana com muitas áreas alagadas, o que exigirá levantamento do leito da rodovia e a construção de passagens para as águas. Essa peculiaridade do município dificultava seu acesso até recentemente. No período das chuvas, chamado de Inverno,  a melhor rota para quem estava em Cuiabá era por Montes Claros de Goiás e Itacaiú no município de Britânia (GO), pois as rodovias MT-100 e MT-326 ficavam submersas em alguns trechos.

Dr. Eugênio cobrando

Representante político do Vale do Araguaia, Dr. Eugênio visitou a ponte no final da semana passada, acompanhado por políticos da região. O parlamentar insiste na cobrança da pavimentação do trecho em Mato Grosso, mas prega no deserto.

Além da frieza da classe política mato-grossense em relação ao Vale do Araguaia, até a Imprensa cuiabana nega espaço para noticiar seus interesses. O distanciamento de Mato Grosso é crônico e alimenta o sentimento pela emancipação do Estado do Araguaia.

Sempre foi assim com o Araguaia

A vergonhosa ponte liga o nada a lugar nenhum não é o único vexame no setor rodoviário no Vale do Araguaia. Senão vejamos:

Em janeiro de 1979 com a instalação de Mato Grosso do Sul, desmembrado em novembro de 1977, Mato Grosso tinha 998.730 habitantes concentrados em Cuiabá, seu entorno e nos poucos municípios da época, mas o Vale do Araguaia era imenso vazio demográfico, sobretudo mais ao Norte. Essa era a realidade a ser enfrentada pelo governo estadual, que precisava executar obras e promover a ocupação populacional como orientavam os bordões do regime militar: Homens sem terra para terra sem homens e Integrar para não Entregar. Nesse contexto, a iniciativa privada foi decisiva para a criação de cidades, a exemplo de Santa Cruz do Xingu, como veremos, e Sinop, Sorriso, Alta Floresta, Nova Mutum, Canarana, Água Boa, Querência, Comodoro, Nova Bandeirantes, Vila Rica, Colíder e outras.

Um erro de engenharia beneficiou Santa Cruz do Xingu

Em abril de 1979 no alvorecer da nova realidade territorial mato-grossense a empresa de sociedade anônima Colonizadora e Representação do Brasil (Corebrasa) requereu junto ao presidente do Incra, Paulo Yokota, a aprovação de um projeto de colonização numa área de 24.969 hectares então pertencente ao município de Luciara. O projeto levava a chancela técnica do engenheiro agrônomo Orlando Roewer, figura lendária na criação de Canarana, onde foi braço direito do colonizador e pastor luterano Norberto Schwantes, fundador na região das cidades de Canarana, Água Boa e Querência, e de Terra Nova do Norte e Nova Guarita, no Nortão.

O projeto da Corebrasa tinha uma definição fundiária ordenada. Era calcado na demarcação de 50 lotes de 400 hectares e de 20 com 200 hectares, e de 20 chácaras de 15 hectares no entorno do perímetro urbano de 123 hectares tendo ao lado uma pista de pouso. A empresa esperava que a vila que ali surgiria fosse transformada em cidade, o que aconteceu em 28 de dezembro de 1999, quando o governador Dante de Oliveira sancionou a lei de autoria do deputado estadual Humberto Bosaipo emancipando Santa Cruz do Xingu do município de São José do Xingu, numa área de 5.623 km², na divisa com o Pará. Na eleição de 2000 o eleitor santa-cruzense-do-xingu elegeu seu primeiro prefeito e a primeira legislatura de sua Câmara Municipal.

Roewer é um pesquisador da agricultura tropical e apostava que a área da Corebrasa fosse apropriada para o cultivo de pimenta-do-reino. Tanto assim, que aquele condimento tornou-se a cultura-âncora na proposta para convencer agricultores a investirem no plano. Essa meta popularizou a iniciativa, que na região era conhecida por todos e chamada de Projeto Santa Cruz da Pimenta-do-Reino. Porém, o avanço da fronteira agrícola da soja transformou por completo a economia rural do Vale do Araguaia e aquela leguminosa está presente em Santa Cruz do Xingu, que também conta com uma pecuária de corte expressiva.

O planejamento da Corebrasa viabilizou-se plenamente conquistando sua emancipação. Hoje, os 2.834  habitantes urbanos e rurais de Santa Cruz do Xingu na comarca de Vila Rica, participam ativamente do processo de desenvolvimento de uma cidade planejada, com acesso pavimentado à BR-158 em Confresa, parcialmente asfaltada, com coleta regular de lixo, serviço de saúde, escola pública, pista de pouso, energia elétrica e com telefonia móvel e fixa,

 

Um erro providencial

Mais dia menos dia a colonização de Santa Cruz do Xingu aconteceria, mas ela foi antecipada graças a um erro de engenharia na locação da BR-080, no começo da década de 1970.

Moradores antigos na região contam que na fase de implantação da BR-080 ligando Mato Grosso ao Pará, cruzando o rio Xingu, via Matupá – onde a mesma se juntaria à BR-163 – um cálculo errado de engenharia no agora entroncamento conhecido como Bituca, ao invés de direcionar o picadão à esquerda o manteve reto e o levou adiante até a área onde se situa a cidade de Santa Cruz do Xingu. Por conta desse erro a sabedoria popular apelidou aquela mancada de Estrada Perdida.

A abertura do picadão da Estrada Perdida facilitou o acesso ao imóvel da Corebrasa e aos demais na região. Após a constatação do erro na implantação daquele trecho da BR-080 sua obra foi retomada no rumo definido por seu projeto, passando por São José do Xingu e prosseguindo até Matupá à margem da BR-163. Essa rodovia foi estadualizada e rebatizada MT-322. A mesma MT-322 volta a ser BR-080 no trecho de São José do Xingu a Matupá, mas para que a mesma prossiga até o término de seu trecho real, na ponte sobreo Araguaia, em Luiz Alves, muito água terá que passar debaixo da ponte que liga o nada a lugar nenhum.

PS – Matéria revisada às 5h56 desta terça-feira, 7 de janeiro.

Fotos:

1 – Dnit

2 – Prefeitura de Ribeirão Cascalheira

3 – Assessoria ALMT

4 – Antonio Mendes – SCX

 

Comentários (5)
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  • Walter de Fátima

    Sempre uma aula de história viva de nosso MT

    Coronel PM Walter de Fátima – Cuiabá

  • Vereadora Dalva Peres

    Disse tudo, Eduardo! E não é simplesmente abrir a BR-080 naquele trecho. Mais que isso, levantar um aterro de vários e vários km. Passa-se a impressão que fizeram um projeto somente para a construção da ponte, sem a mínima pretensão de ligação a algum lugar.

    Dalva Peres vereadora e ex-prefeita de Cocalinho

  • Eduarti Fraga

    Excelente matéria. Que as nossas “otoridades” acordem.
    Eduarti Fraga – advogado – Cuiabá

  • Engenheiro Alex

    Analisando o mapa, a ponte vai encurtar o trajeto em até cinco vezes. No site do Dnit é citado a necessidade de asfaltar os dois acesos (Cocalinho e Luiz Alves) que somados dão menos de6 km para que se utilize o trecho.
    Engenheiro Alex

  • Antônio Mendes

    Parabéns meu nobre jornalista Eduardo Gomes. Bela reportagem

    Antônio Mendes – advogado e historiador – Santa Cruz do Xingu