Meandros da ligação de Mato Grosso com a aniversariante Bolívia

Eduardo Gomes

@andradeeduardogomes

Não faz tanto tempo assim em termos históricos, mas o mundo era outro, bem diferente. Do lado de cá da fronteira, Cáceres; de lá, San Matias engalanada com um desfile militar e as ruas inundadas pelo som singular da flauta Pan, que chamamos de Andina. Era quarta-feira, 6 de agosto de 1975, data em que os hermanos bolivianos celebravam o Sesquicentenário de Independência da Bolívia.

A palavra sesquicentenário soava emblemática para nós brasileiros, que três anos antes, em 7 de setembro de 1972, comemoramos os 150 anos da Independência do Brasil.

À época, Cáceres era meu endereço. Percorri os 100 km da empoeirada e esburacada BR-070 até a fronteira no Destacamento Militar do Exército, em Corixa. Pelo caminho cruzei uma ponte de madeira  sobre o Jauru com suas águas turvas, perto da vila do Limão. Atravessei a fronteira para o outro lado, avancei 5 km pelo Tramo Hermanos Lacerda e entrei em San Matias.

A cidade pequena e pacata abria um hiato para burburinho pelo Dia Nacional. Acompanhei em parte o desfile, pois o mesmo já acontecia quando cheguei. A temperatura era a mesma em ambos os lados da fronteira, pois clima não conhece limite territorial político. Nada melhor que uma rodada da cerveja Paceña, que é feita com a pureza das águas andinas.

Do nosso lado e de lá havia paz, muito embora distante de San Matias, no Altiplano, o narcotráfico se fizesse presente e exportando cocaína para o mundo. O Brasil ainda não estava enrodilhado pelos tentáculos do crime organizado,

De 1975 o ano do Sesquicentenário da Independência da Bolívia até hoje se passou quase meio século – período curto em se tratando de país, porém longo para o ser humano. O aspecto urbano de San Matias não sofreu mudanças profundas,  mas a vida não é a mesma de antes naquela região quer seja no Brasil ou por lá.

A mudança começou em 1975, quando a Força Aérea da Bolívia estabeleceu a rota La Paz/San Matias com escalas e frequência semanal às quartas-feiras, nos dois sentidos, operando o bimotor inglês Avro, pelo seu braço de transporte civil Transportes Aéreos Militares da Bolívia/TAM (em português), que atendia às cidades praticamente isoladas.

Pelas asas do TAM, mas, creio, sem nenhum envolvimento por parte de seus tripulantes, a cocaína aterrissou em San Matias. Claro, não havia tráfico como agora, mas todas as quartas-feiras, com sol ou chuva, camionetes e automóveis saíam de Cáceres para aquela cidade boliviana. Na volta, cocaína.

De um lado e outro da fronteira a fiscalização aduaneira era zero. Os veiculos eram revistados, mas a grosso modo. No Brasil, o que se exigia era a documentação veicular, para evitar que carro roubado ou furtado cruzasse para o outro lado. Em sentido contrário, a famosa tranca, onde os militares mordiam – continuam mordendo e pouco se importando com os produtos comprados em seu país que à época era governado pelo ditador general Hugo Banzer Suárez.

Em 49 anos o narcotráfico ganhou solidez, criou milionários, dominou o crime, controla o lado de dentro dos presídios, inclusive em Cáceres, onde boa parte da população carcerária é formada por mulheres chamadas de mulas.

A paz é superficial na região, mas a harmonia entre os povos existe. São muitos os casais bolivieiros ou brasilianos – de brasileiros com bolivianas e vice-versa. A estrada de chão para San Matias  virou rodovia pavimentada. Lá, ainda resta um trecho de uma carretera sem pavimentação para completar a ligação bioceânica Brasil Norte do Chile e Sul do Peru via Bolívia.

Que a Rota Quadrante Rondon saia do papel com caminhos rumo aos portos por Cáceres e Vila Bela da Santíssima Trindade. Que continuemos hermanos. Que a Bolívia explore bem seu potencial mineral, suas terras agricultáveis, seus encantos turísticos.

Lutemos para que o vaivém entre os dois países seja de pessoas e produtos do mercado convencional. Que tenhamos força para nos livramos do narcotráfico. Parabéns Bolívia. São 199 anos de uma caminhada que começou com Simón Bolívar e que continuará se renovando a cada nascer do Sol enquanto houver Terra e Sol, se Deus quiser e a padroeira nacional boliviana Nossa Senhora de Copacabana ajudar..

Comentários (4)
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  • Prefeito Jadilson

    Parabéns pela reportagem.

    Jadilson Alves de Souza – prefeito de Curvelândia na faixa de fronteira – via WhatsApp

  • Diego Gordon

    Texto bem escrito. Retrato fiel da nossa fronteira seca!
    Diego Gordon Padilha – advogado, servidor do Tribunal de Justiça – Cuiabá – via WhatsApp

  • Maria Isaura

    Um show. Continuo sua fã

  • Jair Mariano

    Bela reflexão sobre esse pedaço em que a Bolívia e o Brasil se encontram uno…. gostei.

    Jair Mariano – Ex-deputado estadual – Colniza – via WhatsApp