Céu cinzento pela inclemência da seca no chamado Verão Amazônico. Na quarta-feira, 19 de setembro de 2012 o sol nasceu envolto na fumaça sobre a área da gleba Suiá-Missú conhecida na região como Fazenda do Papa. O calor era sufocante e a umidade relativa do ar bem baixa. Os moradores que acordaram mais cedo não estavam preocupados com a questão climática. Eles tinham conhecimento que já havia chovido por perto e sabiam que em breve o aguaceiro molharia aquela terra; que o azul do infinito ressurgiria; e que as crianças, doentes e idosos não mais sentiriam tantos problemas respiratórios como naquele momento. O que os deixava agoniados era a insegurança jurídica do lugar, pois a qualquer momento poderia despontar na curva da BR-158 um comboio militar e policial tendo à frente um oficial de justiça para jogá-los à beira da estrada e transformá-los em miseráveis sem terra, sem hoje e sem amanhã.
Essa agonia foi companheira incômoda e inseparável dos jovens e adultos que juntamente com a criançada formavam a comunidade de Estrela do Araguaia – ou Posto da Mata, o nome que lhe foi dado pela sabedoria popular – com sete mil indivíduos. Esses moradores se espalhavam pela vila e a zona rural em 165 mil hectares que ocupam 70% do município de Alto Boa Vista e que se estendem aos vizinhos Bom Jesus do Araguaia e São Félix do Araguaia. Essa área fazia parte do maior latifúndio do mundo, a Fazenda do Papa, com 560 mil hectares, que pertenceu ao poderoso grupo italiano ligado ao Vaticano, Azienda Generale Italiana Petroli, conhecido internacionalmente pela sigla Agip.
O que garantia a presença de todos na zona rural e em Posto da Mata era uma decisão do vice-presidente do Tribunal Regional Federal (TRF) da Primeira Região, em Brasília, desembargador federal Daniel Paes Ribeiro, proferida em 13 daquele mês. A suspensão determinada por Paes Ribeiro atendia reclamação dos posseiros, representados pela Associação dos Produtores Rurais da Área Suiá-Missú (Aprosum), e ela aconteceu imediatamente após forte pressão da bancada federal mato-grossense e do governador Silval Barbosa sobre o governo da presidente Dilma Rousseff em defesa dos ocupantes da área; de manifestação na porta do TRF feita por mulheres e crianças das famílias que viviam em Marãiwatsede; e de um bloqueio na BR-158 por moradores para chamar a atenção sobre os problemas que aconteceria caso houvesse a desintrusão ordenada pela Justiça Federal.
Na área todos sabiam que a suspensão da desintrusão poderia cair a qualquer momento. Por isso, independentemente que o sol nascesse entre a fumaça ou que o firmamento estivesse azul com nuvens brancas, ninguém tinha motivo para sorrir numa terra onde com medo do pior, até mesmo o céu se escondia.
Escrevi o texto acima na quinta-feira, 20 de setembro de 2012, em Cuiabá. Na véspera pernoitei em Posto da Mata, depois de uma tarde inteira conversando com moradores. A temível desintrusão aconteceu em 10 de dezembro daquele ano. Somente voltei à região em 12 de outubro de 2013 – era o Dia das Crianças. Viajei até lá pra produzir uma reportagem com as vítimas da desintrusão da antiga Fazenda do Papa.
A desintrusão resultou na demolição de Posto da Mata com suas casas, escolas, igrejas, posto de saúde e comércio; e o mesmo aconteceu com os lares, currais e cercas na zona rural. Na foto, em Alto Boa Vista, abraço a pequena Gabi – símbolo daquelas vítimas, e Israel Cláudio Cabral Martins Novaes, que também foi jogado no olho da rua. Estou magro e abatido. Um mês antes me submeti a duas cirurgias para receber quatro stents farmacológicos após um infarto. Mesmo assim, peguei a estrada e percorri mais de mil quilômetros de Cuiabá até lá (parte na poeira), para mostrar como estavam os brasileiros vítimas daquela monstruosidade patrocinada pelo governo federal com as bênçãos do STF para delírio de ONGs internacionais, Funai e Ministério Público Federal.
Não há mais Posto da Mata. Os sítios e fazendas agora povoam as mentes de seus antigos moradores, que foram jogados na sarjeta. A área foi dada aos índios xavantes e agora atende pelo nome de Terra Indígena Marãiwatsédé. Aldeados praticamente não existem. Esse episódio é um dos marcos dos meus 50 anos na estrada escrevendo.
Eduardo Gomes de Andrade
FOTOS – Felipe Barros
PS – Capítulo 133 da série diária MEIO SÉCULO NA ESTRADA, numerada, mas sem ordem cronológica, que se estenderá a 10 de maio deste ano
EG
Soberbo este texto e muito triste o fato. Só posso parabenizar o senhor
Rejanne Azevedo – Cuiabá – via WhatsApp