Boa Midia

Não façam do assassinato de Burnier o fermento da discórdia

Eduardo Gomes

@andradeeduardogomes

eduardogomes.ega@gmail.com

A História não se reescreve. A História se transcreve. Leio desencantado que a causa mortis do padre jesuíta João Bosco Penido Burnier, antes definida no óbito como “Acidente”, foi alterada pelo governo, representado pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP),  para “Morte não natural, violenta, causada pelo Estado Brasileiro, no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política pelo regime ditatorial instaurado em 1964″.

Lamentável a primeira causa apresentada, “Acidente”, e a outra, de crime político, também. Acompanhei este caso durante anos. Em Ribeirão Cascalheira conversei com moradores que viviam no lugar quando do crime.

A primeira causa oficial é um ato cartorial vergonhoso. O sacerdote foi executado com um tiro na nuca, desferido pelo soldado da Polícia Militar, Ezy Ramalho de Souza. O disparo foi efetuado em 11 de outubro de 1976. Burnier foi levado de avião para Goiânia, onde morreu em 12 de outubro, Dia de Nossa Senhora Aparecida.

O Estado literalmente caçava comunistas, mas Burnier não tinha ligação com a esquerda. Seu sacerdócio era voltado para os povos indígenas no Chapadão do Parecis, com base em Diamantino, onde seu corpo foi sepultado. Ele estava na hora e no lugar errados.


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Hoje, nem tanto, mas no passado, quando um policial militar era assassinado, a corporação partia em busca de vingança. Em Ribeirão Cascalheira, uma semana antes do assassinato de Burnier, o cabo da PM Félix Pereira de Castro foi assassinado sem que se soubesse quem o matou. Félix era extremamente violento e tinha inimigos além do que se possa imaginar. Em busca do autor, a PM entrou em cena. O bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia, Dom Pedro Casaldáliga, passava por Ribeirão Casclheira acompanhado por Burnier; os dois tomaram conhecimento de que na delegacia local, policiais torturavam um grupo para que revelassem o nome e o paradeiro do atirador que matou o graduado. Margarida Barbosa da Silva, Yolanda Eloisa dos Santos, Santana Rodrigues de Oliveira Santos e José Pereira de Andrade recebiam socos, cassetadas e chutes da soldadesca. Burnier foi à delegacia e Dom Pedro o acompanhou em silêncio. Ao ver as agressões, o sacerdote pediu que parassem de bater e Ezy o ameaçou. Sem se deixar intimidar, o padre disse que se não o obedecessem, ele denunciaria os torturadores aos seus superiores em Cuiabá. Ezy deu-lhe uma bofetada e uma coronhada de revólver; cambaleante, Burnier foi alvejado na nuca pelo soldado.

O crime foi exclusivamente na esfera da Polícia Militar. O regime ditatorial nada teve a ver com o fato. Se o Estado Brasileiro quisesse matar alguém no Vale do Araguaia, por subversão ao sistema ditatorial o alvo seria Dom Pedro. Porém, a mão da ditadura não se levantava contra o bispo, porque além da igreja ele também representava os interesses econômicos da Santa Sé na região – a fazenda Suiá-Miçu era conhecida como fazenda do Papa, porque em sua composição societária havia empresas ligadas ao Vaticano, como a fábrica de armas Beretta.

PAZ – Dom Pedro chegou à região em 1971 e em 27 de agosto daquele ano foi sagrado bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia, onde permaneceu na missão pastoral até 2 de fevereiro de 2005, quando foi alcançado pela expulsória canônica aos 75 anos e nunca sofreu nenhum tipo de agressão ou violência.

No período na prelazia Dom Pedro tinha controle sobre os sem terra e os povos indígenas e preservou a fazenda do Papa até sua doação pela Agip, sua dona oficial – ao governo brasileiro para o restabelecimento da Terra Indígena Marãiwatsédé dos xavantes.   Dom Pedro morreu em 8 de agosto de 2020, numa casa missionária em Batatais, no interior paulista e seu corpo está sepultado à margem do rio Araguaia, em São Félix do Araguaia.

RESUMO – Em Ribeirão Cascalheira participei das Romarias dos Mártires da Caminhada, em 1996, 2001 e 2011. Estive na Capela dos Mártires da Caminhada, ao lado do local onde Burnier foi alvejado e visitei a Galeria dos Mártires da América Latina.

A Prelazia de São Félix do Araguaia e a Matriz São João Batista, de Ribeirão Cascalheira preservam a memória de Burnier e de outras vítimas da violência em defesa dos oprimidos. Peço a Deus que continuem assim, mas lamento que um episódio tão triste quanto o assassinado do sacerdote sirva de fermento para fomentar a estúpida polarização direita-esquerda, esquerda-direita, nesta terra de liberdade, de jeitinho, de puxa-saquismo, de oportunismo chamada Mato Grosso.

Foto: CIMI/Reprodução

 

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