Escolhas erradas…

Nos 10 anos em que o Araguaia Esporte Clube imperou soberano no futebol do leste mato-grossense, principalmente no período de 1957 a 1964, diretores do clube e lideranças políticas do município faziam de tudo para o alviverde só contratar jogador com boa formação escolar, educado, politizado, que tivesse uma profissão ou gostasse de trabalhar, etc., para evitar que pessoas desqualificadas passassem a viver entre a ordeira população alto-araguaiense.
Por isso, quando ficavam sabendo que seria designado alguém do Judiciário, da Polícia Civil, da Polícia Militar, do fisco estadual, para Alto Araguaia, particularmente as famílias Hugueney e Lima mexiam os pauzinhos para que os escolhidos fossem pessoas de alto nível em todos os aspectos. E de preferência bamba na bola. Não se tratava de preconceito, mas a pacata população alto-araguaiense não queria saber de boêmios, pinguços, frequentadores de ZBMs, em seu meio. Mesmo que fossem craques de futebol…
Entretanto, mesmo com todo esse cuidado, de vez em quando o “Pantera do Leste” contratava boleiros que davam muita dor de cabeça aos dirigentes. E quando aparecia em Alto Araguaia, sem mais nem menos, joga¬dores bons de bola se oferecendo para defender o alviverde, a diretoria já sabia: era tranqueira da grande na certa…
Certa vez o AEC foi buscar em Tupaciguara-MG um centro-médio chamado Coringa. O rapaz era um craque de mão cheia. No entanto, o que ele tinha de virtudes na arte de lidar com a bola, tinha também de aversão ao trabalho. Tanto é que de vez em quando Coringa comentava com companheiros de clube: “Este neguinho aqui não nasceu para trabalhar…”
Pedro Lima não sabia que Coringa não queria nada com a dureza. E algum tempo depois de sua chegada a Alto Araguaia, o dirigente alviverde disse a Coringa que ia arranjar um emprego para ele trabalhar, como os outros jogadores do “Pantera do Leste”.
– O dia que o Pedrão falar de novo de emprego comigo vou pegar o ônibus lá em Santa Rita do Araguaia para ele não me alcançar… – comentou Coringa com alguns companheiros assim que o dirigente do “Pantera do Les¬te” virou as costas…
Em outra ocasião apareceu na cidade, como quem não queria nada, um jogador chamado Ezequiel. Treinou no AEC, abafou e ficou. Como demonstrou ser gente boa – lembra Pedro Lima – o clube montou uma lavande¬ria e tinturaria para Ezequiel trabalhar e ir ganhando a vida, conciliando sua atividade profissional com a bola.
Tempos depois, o AEC veio disputar um jogo em Cuiabá. Titular absoluto da equipe, Ezequiel saiu do hotel para dar uma voltinha e sumiu. Só reapareceu quase na hora do time ir para o campo. Estava completamente embriagado, mas impecavelmente vestido com um terno de linho 120… que o juiz de Direito João Antonio Neto havia deixado na sua tinturaria para lavar e passar. Ezequiel assistiu ao jogo das arquibancadas como se fosse uma grande autoridade…
Entre os aventureiros que passaram por Alto Araguaia nos áureos tempos do “Pantera do Leste”, Pedro Lima lembra especialmente de dois: o volante e armador Manaus e o zagueiro Meia-Noite. Natural de Tupaciguara, em Minas Gerais, Meia-Noite era lavrador e foi descoberto por Pedro Lima em Ituiutaba, no mesmo estado. Manaus, como o nome indica, devia ser natural da capital do estado do Amazonas. Ambos ficaram só uns dois meses no AEC. Bons de bola, anoiteceram e não amanheceram em Alto Araguaia…
Mas o maior dos malas entre os tantos que Alto Araguaia conheceu durante o longo reinado do AEC foi mesmo Sarará, que, entre outras façanhas, inclusive se fazia passar por Sarará, aquele craque de bola que tinha tido uma passagem brilhante pelo São Paulo FC na década de 50.
Sarará tinha apitado um amistoso do AEC contra o Palmeiras em Mineiros, em Goiás. Como teve boa atuação, o que era um fato raro, porque os juízes sempre beneficiavam o time da casa, Sarará caiu nas graças de Pedro Lima. E já foi com a delegação do “Pantera do Leste” para Alto Araguaia. Mas no dia seguinte, Sarará disse que não podia ficar, porque sua mala de roupa tinha ficado em um hotel em Jataí.
Esse problema era de menos: o diretor Pedro Lima pegou um dos aviões de sua frota de cinco táxis aéreos e se mandou para Jataí com Sarará para buscar suas roupas. Jogo rápido. Pedro Lima ficou no campo de pouso e decolagem de Jataí e Sarará foi ao hotel buscar seus pertences. Pouco depois Sarará estava de volta com uma notícia desagradável: um viajante tinha levado sua mala embora…
O pessoal do AEC andava desconfiado que Sarará não era o Sarará do São Paulo FC coisa nenhuma. Por isso, Pedro Lima designou o ex-jogador do “Pantera do Leste” Lhamber Saad Resende, que tinha um tio que era diretor do tricolor paulista, para descobrir a verdade.
Lhamber partiu para cumprir a missão. Passados alguns dias, Lham¬ber estava de volta, garantindo que o
Sarará que estava em Alto Araguaia era mesmo o Sarará do São Paulo FC, conforme garantiu seu tio.
– Meu tio até me reconheceu e quando me viu, disse-me: “Porra, Saad, o que você está fazendo por aqui?…” – repetia Lhamber, prestando contas da sua missão em defesa do “Pantera do Leste”.
Mas descobriu-se muito cedo que Sarará não era o Sarará verdadeiro coisa alguma. E a história do encontro do ex-jogador do AEC com o tio do São Paulo FC não passava de um blefe de Lhamber, que era muito vaidoso e não ia perder uma boa oportunidade para aparecer.
O sumiço da mala e o caradurismo de Sarará, que fez Pedro Lima voar duas horas por nada, viraram gozação na cidade. A partir daí, quando alguém duvidava de alguma coisa ou do cumprimento de uma promessa, prin¬cipalmente de políticos, saía com ironia: “Ah, está na mala do Sarará!…”, “Vai chegar na mala do Sarará!…”
Como aconteceu durante uma visita que o então governador do Estado, Fernando Correa da Costa, fez a Alto Araguaia. Sem conhecer a história da mala do Sarará, o governador prometeu que levaria para o município uma agência do Banco do Brasil, garantindo num comício em praça pública que para a pessoa pegar dinheiro no banco bastava mostrar as mãos calejadas. Foi aquela gozação dos moradores de Alto Araguaia.
– Esse banco vai chegar aqui na mala do Sarará… – diziam os mora¬dores alto-araguaienses, certos de que a promessa do governador não passava de uma grande cascata.
Sarará ficou um bom tempo em Alto Araguaia. Com a ajuda de Pedro Lima, ele montou um quiosque num terreno da prefeitura no centro da cidade para vender espetinho com mandioca e refrigerantes. E se deu muito bem. Alguns anos depois, Pedro Lima passou por Andradina-SP e foi almoçar na principal churrascaria da cidade, cujo dono era Sarará, que nem lhe cobrou a refeição…
Ferrinho foi outra “fera” danada que passou pelo AEC. Um dia, Ferrinho apresentou a Pero Lima uma carta da mãe dele, pedindo que ele viajasse para Uberlândia, onde ela morava, pois precisava falar com o filho com urgência.
A carta estava muito bem escrita, mas com um começo cheio de formalidades que não são comuns em tratamento familiar. Do tipo “Prezado filho Augusto Ferro da Silva”, que era seu nome completo. E mais: a carta dizia que Ferrinho devia viajar pela então Real Aerovias, que cobria todo o interior, no dia tal, horário tal, etc…
Naquele final de semana, o AEC tinha um jogo importante e coube a Pedro Lima dirigir o apronto final da equipe, como sempre, colocando o ataque do time titular para treinar contra a defesa.
O treinador foi distribuindo as camisas dos times titular e aspirante. Quando chegou a vez de completar o ataque titular, Pedro Lima disse com a voz calma: “A número 11 vai para a mãe do Ferrinho…”
Nem bem Pedro Lima completou a frase, o atacante Wagner, que tinha jogado no juvenil do Santos FC e posuia o 2° grau completo, deu um pulo lá longe, gesticulando e gritando: “Eu não tenho nada com isso, foi ele que mandou eu escrever a carta…”
PS – Reproduzido do livro Casos de todos os tempos Folclore do futebol de Mato Grosso, do jornalista e professor de Educação Física Nelson Severino
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