Boa Midia

Comendador Arcanjo de volta ao seu antigo reino

Para alguns, anjo; demônio, para outros. Assim o Comendador Arcanjo era visto em Mato Grosso e mais especificamente em Cuiabá, onde funcionava – e ainda funciona – o pulmão de seu império. Isso, na época em que dominava o jogo do bicho, factorings, os cassinos e tinha ramificações empresariais para todos os lados, inclusive no Uruguai e Estados Unidos. Seu reino desmoronou parcialmente e seu poder não mais existe, muito embora continue bilionário. Mas, afinal, quem é essa figura que se dividia entre a auréola e o tridente? É um quase septuagenário – bilionário como se disse – preso desde 2003 e com tempo útil de vida insuficiente para cumprir até o limite de 30 anos o restante da soma de suas penas, superior a 80 anos. E antes da prisão, quando nem sonhava com a terceira idade e dava as cartas? Como ele era? Não esperem resposta neste parágrafo. Façam suas apostas sobre a resposta. Afinal, trata-se de um homem que explorava jogo do bicho e cassinos…

O título Comendador fica de lado nesse parágrafo. João Arcanjo Ribeiro é um goiano nascido em Jeroaquara, município de Faina. Foi policial civil em Mato Grosso do Sul. No começo dos anos 1980 veio para Cuiabá e foi segurança de figurões; nesse período assumiu a Loterias Colibri, que não passava de uma portinhola aberta para receber apostas do jogo do bicho, que funcionava com apoio dos barões do Rio de Janeiro. Ambicioso que só ele, Arcanjo expandiu o negócio. Ocupou todas as esquinas estratégicas para os cambistas nas principais cidades. Suas pules geravam mais de quatro mil empregos informais. O rádio e a TV transmitiam as duas extrações diárias do Jogo do Barão. O mercado da sorte ia de vento em popa atuando dentro de delegacias, fóruns, prefeituras, Assembleia Legislativa, Palácio Paiaguás e por onde mais se possa imaginar.

Nem só do bicho vivia o ex-policial civil quando seus negócios evoluíram. Ai ele recebeu tratamento de Comendador. O cassino Estância 21, com suas digitais, varava madrugadas em Cuiabá e Rondonópolis, frequentado pela elite econômica e os donos do poder, sem se esquecer da presença constante e muito reverenciada de doutos magistrados.

Mais: o Comendador Arcanjo expandiu seu império. Hotéis, piscicultura, pecuária, factorings, negócios imobiliários e uma sempre negada agiotagem engordavam suas contas bancárias. Como se tudo isso ainda fosse pouco, ele descobriu um maná nos meios políticos e passou a operar de modo nada republicano com a banda pobre do governo e da Assembleia.

Comendador Arcanjo em foto de arquivo
Comendador Arcanjo em foto de arquivo

Tudo caminhava bem para o Comendador Arcanjo e ele poderia encontrar a blindagem que o teria livrado do furacão que o desmontou, mas a desqualificou tamanho seu grau de crença na impunidade. Blindá-lo seria possível com um mandato de deputado federal em 1998, como se falou muito à época. Se subisse ao palanque, com o dinheiro que tinha (e tem) sairia eleito, porque compraria mandato, como tantos sempre o fazem muito embora teimem em negar tal prática. O Comendador Arcanjo preferiu ficar fora da política, muito embora políticos de todas as cores ideológicas e fisiológicas o procurassem.

Zildete Leite dos Reis, que foi cozinheira do Comendador Arcanjo depôs na CPI dos Bingos no Senado. Zildete revelou que o patrão recebeu Palocci, Paulo Okamoto e José Dirceu em Cuiabá e que esse trio sempre saía com malas cheias de dinheiro para a campanha de Lula a Presidência na eleição de 2002. O senador Efraim Morais (PFL/PB) presidia aquela CPI e foi quem ouviu Zildete, mas suas palavras entraram por um e saíram por outro ouvido.

O Comendador Arcanjo é bom cabrito: não berra. Mas, como sempre há exceção, revelou que o então senador Antero Paes de Barros (PSDB) o procurou em sua Fazenda São João, pedindo dinheiro para sua candidatura fracassada ao governo em 2002, quando Blairo Maggi (PPS) venceu em primeiro turno.

SANGUE – O assassinato do empresário Domingos Sávio Brandão de Lima, 41, defronte ao prédio em fase final de construção para sediar seu jornal Folha do Estado – que não mais circula – foi a gota d’água para o desmoronamento do império do Comendador Arcanjo. O crime aconteceu em 30 de setembro de 2002. Sávio Brandão foi executado com cinco tiros disparados por pistoleiro.

A notícia do assassinato de Sávio Brandão ganhou Mato Grosso e teve repercussão nacional. Esse crime resultou na bancarrota pessoal do Comendador Arcanjo, que começou em 5 de dezembro de 2002 com a deflagração da Operação Arca de Noé, que entre outros mandados expedidos pelo então juiz federal Julier Sebastião da Silva, havia um de prisão preventiva contra ele. Antes da chegada da PF ele fugiu para o Uruguai. Sua prisão aconteceria somente em 11 de abril de 2003. Empresário com negócios em Montevidéu, o nosso fugitivo Comendador somente foi parar atrás das grades por se encontrar naquele país com identidade falsa. Negociação entre os dois governos facilitaram sua transferência para prisão em Mato Grosso.

O Ministério Público denunciou o Comendador Arcanjo como mandante do assassinato de Sávio Brandão, porque o jornal da vítima estampava manchetes que o acusavam dentre outras coisas de chefe do crime organizado no Estado. Mesmo negando participação, foi condenado a 19 anos.

Sempre negando todas as acusações que viraram ações penais, o Comendador Arcanjo insiste em sua inocência. Desde sua prisão faz turismo penitenciário; esteve preso em Campo Grande, Porto Velho e Mossoró (RN), de onde foi trazido para Cuiabá no dia 14. Figura misteriosa, sobre ele são lançadas pechas de violento e de benevolente.

Nos bastidores é lugar comum ouvir que inadimplentes devedores de empréstimos a juros eram surrados e afogados em piscinas. Um dos comentários mais picantes é o de que um prefeito de um município na região metropolitana de Cuiabá ensaiou um calote por uma dívida em jogo e o Comendador Arcanjo teria quebrado seus dois braços, além de tê-lo feito pagar a dolorosa.

Também de bastidores. No cruzamento da Avenida Mato Grosso com a Rua Desembargador José de Mesquita, em Cuiabá, um distraído motorista bateu com seu Chevette surrado no carrão do Comendador Arcanjo, que era escoltado por seguranças. O desatento desceu e quando viu quem estava em sua frente, tremeu. O simpático cidadão que ocupava o veículo abalroado sorriu para ele, perguntou se estava tudo bem e cavalheirescamente sugeriu que ele prestasse mais atenção ao volante.

Entre o céu e o inferno o Comendador Arcanjo levou a vida. Em Rondonópolis, uma grande reforma do fórum somente foi possível graças à generosa doação do Estância 21 ali instalado. Também sobre esse cassino vale lembrar que naquela cidade era muito comum os comentários de que a pavimentação de acesso às salas das roletas, na Vila Poroxo, foi feita às pressas pelo presidente da Companhia de Desenvolvimento (Coder), empresa da prefeitura. A razão para a obra: pagar uma dívida do dito dirigente.

AMANHÃ – a Operação Arca de Noé e parte da relação do Comendador Arcanjo com políticos serão destaque amanhã, domingo, em blogdoeduardogomes. Mas, esse texto não estaria completo se não informasse que o jogo do bicho começou no governo de Júlio Campos (PDS) que prosseguiu impune até 2002, quando o governador era Rogério Salles (PSDB). Mais: que a elite e os donos do poder brigavam pelo direito a pelo menos uma foto – quando selfie não existia – ao lado do senhor de todas as vontades. Melhor do que tudo isso ainda era receber cesta de Natal com cartão personalizado do casal Sílvia Chirata & Comendador Arcanjo.

Enquanto esperam pela conclusão do material no domingo, 17, saibam que o Comendador Arcanjo mesmo em tempos de vacas magras ainda tem direito a regalias. Sua cela na Penitenciária Central do Estado, onde sonha com a liberdade, ganhou uma bela reforma para recebê-lo.

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