Boa Midia

Homenagem atravessada leva Tereza de Benguela pra passarela

A Barroca na avenida

Uma homenagem atravessada. Assim foi o desfile da  Sociedade Recreativa Cultural Social Esportiva Beneficente Faculdade do Samba Barroca Zona Sul, da capital paulista, que na sexta-feira, 21, abriu a primeira noite do defile das escolas de samba de São Paulo. Cantando o enredo Benguela… a Barroca clama a ti, Tereza que reverenciou a rainha Tereza de Benguela. O desfile não teve participação de moradores do município de  Vila Bela da Santíssima Trindade, onde viveu a homenageada; o enredo omitiu a Dança do Chorado e o Canjinjin. A Barroca pecou ao não consultar Vila Bela sobre sua valente mulher e a rica tradição cultural herdada de escravos iguais a Tereza. Autoridades locais e a população ficaram perplexos.

A Barroca cruzou a passarela do desfile com 21 alas e nenhuma sobre o Chorado e o Canjinjin que são heranças culturais dos idos da rainha Tereza de Benguela. A escola tinha 2.400 componentes, mas os 16.128 vila-belenses não estavam entre eles.

 

O samba

 

Musa Fitness Renata Spallici rainha de bateria da Barroca

No caminho do amanhã
Obatalá
É a luz que vem do céu
Clareia
Vem de Benguela o clamor de liberdade
Barroca pede tolerância e igualdade

 

Benguela, onde nasceu Tereza

Axé, Tereza
Divina alteza meu tambor foi te chamar
Sua luz nessa avenida
Incorpora a chama yabá
Da magia irmanada por odé
Não sucumbe a fé, traz a luta de Angola

O Quilombo do Quariterê na visão do carnavalesco

E a corrente arrastou pro sofrimento
Um sentimento, valentia quilombola
Reluz o ouro que brota em seu chão
Desperta ambição, mas há de raiar o dia
Do Guaporé ser voz de preservação

Em plena floresta
Auê auê
Resistência na aldeia
Quariterê
Na mata, sou mestiço, guardião
O meu grito de guerra é por libertação

O nosso canto não é apenas um lamento
A coragem vem da alma de quem ergueu o parlamento
Do castigo na senzala à miséria da favela
O povo não se cala, oh Tereza de Benguela

Crianças no desfile: nenhuma delas de Vila Bela

Vem plantar a paz por essa terra
A emoção que se liberta
E a pele negra faz a gente refletir
Nossa força, nossa luta
De tantas Terezas por aí

 

Sem conhecimento

 

Vereador Edclay, “Foi bem estranho”

Em Vila Bela ninguém sabia que a Barroca Zona Sul homenagearia a memória de Tereza de Benguela. “Foi bem estranho“, assim reagiu o vereador Edclay Coelho (PSD) lembrando que em 1994 a Unidos do Viradouro, no Rio de Janeiro, também dedicou um desfile à rainha Tereza de Benguela, com o enredo Tereza de Benguela – Uma Rainha Negra no Pantanal . Mas a Viradouro além de ouvir Vila Bela levou moradores da cidade para participarem do desfile”, citou.

Nazário Frazão, que preside as Irmandades Tradicionais de Vila Bela, entidade sem fim lucrativo que preserva e divulga as tradições culturais daquela quase tricentenária cidade, que foi e primeira capital mato-grossense, também não foi consultado nem informado sobre o enredo do samba.

Tereza de Benguela, a rainha negra que se insurgiu contra a mão escravagista liderou a população formada por índios e negros no Quilombo do Quariterê, após a morte de seu marido José Piolho. Com o adeus de seu companheiro, Tereza reinou, mas em 1770 seu quilombo e seus sonhos foram destruídos e queimados pela soldadesca sob o comando de Luís Pinto de Sousa Coutinho.

Fundada para ser capital, Vila Bela perdeu esse status para Cuiabá. Por mais de um século permaneceu isolada e abandonada à martgem do amazônico rio Guaporé, na fronteira com a Bolívia. Sua população, basicamente negra, não abriu mão de suas tradições culturais, sendo as principais derivadas do doloroso período da escravidão.

Dança do Chorado

 

Dança do Chorado

Na cidade de Vila Bela da Santíssima Trindade e nas fazendas da região, mães, tias, irmãs, cunhadas, primas e amigas dos escravos que seriam levados ao suplício descobriram um meio de amenizarem e até mesmo de evitarem a tortura dos seus. Inventaram a Dança do Chorado, que como o nome diz é um bailado permeado com lágrimas. Ao som dos profanos tambores e instrumentos de cordas, dançavam alucinadamente belas e sedutoras para os lacaios da casa-grande e até para os seus ocupantes.

A mulher do Chorado botava vestido de chita colorida com providenciais aberturas e decote para mostrar aos olhos gulosos dos gajos suas coxas grossas, seus seios arrebitados e sua bunda torneada. Uma rosa vermelha ou amarela no cabelo pixaim. Um colar de miçangas feito com cascas e frutos secos do mato. Um perfume extraído de floresA anca perfeita e tentadora. Os dentes de brancura inigualável. A boca carnuda. Requebrava e em gemidos lascivos despertava desejos. Atiçava ainda mais a tara dos homens que tinham poder para punir ou absolver os escravos a um passo da tortura ou sendo submetidos a ela: gingava com uma garrafa de Canjinjin sobre o cabelo crespo reluzente e dava doses aos extasiados espectadores. O forte teor alcoólico das talagadas com gosto agridoce, corpos bonitos a lhes esfregar… era um ai Jesus!

O que acontecia com uma e outra mulher enquanto as demais dançavam ninguém nunca registrou. Também não há detalhamento do que elas faziam quando cessava a dança e o som dos instrumentos musicais tocados por negros que as acompanhavam. De igual modo nunca se escreveu sobre o comportamento de brancas portuguesas e nascidas em Mato Grosso, com jovens negros. Enquanto seus homens se esbaldavam com as negras, um fuzuê silencioso acontecia entre quatro paredes nas casas-grandes ou em seus quintais. Não havia IBGE para recensear a quantidade de bebês mulatinhos que nasciam de mães brancas e negras. Literalmente era o toma lá dá cá; ora, pois, pois! Davam e se davam bem matrimonialmente as patroas. Puritanas senhoras brancas devotadas à Santa Madre e fiéis quando de pernas fechadas.

O que era dança de dor virou cultura e tradição. O Chorado encanta a todos e mais graça ainda ganha ao som do Conjunto Aurora do Quariterê, formado por mulheres negras com suas vozes roucas e seu ritmo afro-vila-belense saudando o Campo Verde, como a cidade é chamada pelos filhos negros:

(Campo Verde serenado)

 

“O campo verde é serenado
O campo verde é Vila Bela
Campo verde é serenado
Campo verde é Vila Bela
Eu vou-me embora pra cidade
Da Santíssima Trindade
Vou-me embora pra cidade
Da Santíssima Trindade 
Seu eu soubesse que tu vinha
Fazia o dia maior
Dava o nó na fita verde
Outro no raio do sol
A folha da bananeira
De tão verde amarelou
O beijo da tua boca
De tão doce açucarou”

 

O afrodisíaco Canjinjin

 

A sensualidade do Chorado com o Canjinjin

Em Vila Bela a bebida mais consumida depois da cerveja é o Canjinjin, à base de cachaça, gengibre, mel, canela, ervas aromáticas e outros componentes.

A fórmula é guardada a sete chaves pelas mulheres que o fazem, mas a transmitem às suas herdeiras.

A sabedoria popular em Vila Bela diz que Canjinjin foi um jovem, forte e belo príncipe africano filho do rei do Congo. Ao batizarem a bebida com seu nome, as mulheres buscaram uma referência masculina para o produto, que dizem ser afrodisíaco na acepção da palavra.

Em parte da Dança do Chorado as mulheres bailam com uma garrafa de Canjinjin sobre a cabeça, num sincrônico ritual que é perfeito casamento entre o ritmo e o equilíbrio.

VILA BELA – Em 19 de março de 1752 quando o Brasil não sabia onde começava a Bolívia e os bolivianos desconheciam até onde seu território se estendia, o governador da recém-criada Capitania de Mato Grosso, capitão-general Dom Antônio Rolim de Moura Tavares fundou Vila Bela, que se tornou a primeira capital mato-grossense. Porém, em 28 de agosto de 1835 o Império Brasileiro transferiu a capital para Cuiabá. Governantes, magistrados e os bajuladores do poder sumiram na curva da estrada deixando ao léu a população basicamente negra.

O tempo passou. Vila Bela permaneceu sempre na condição de ocupação populacional avançada na Fronteira Oeste fazendo por ali tremular uma certa bandeira de quatro cores e um brado ao exercício da cidadania: ORDEM E PROGRESSO.

Eduardo Gomes – blogdoeduardogomes

FOTOS:

1 a 5 –  Desfile da Barroca Zona Sul – Internet

6 – blogdoeduardogomes

7 – Site público do Governo de Mato Grosso

8 – José Medeiros

 

2 Comentários
  1. Ieda Diz

    Brigadeiro e suas matérias fabulosas

    Ieda Lima – via WhatsApp – Cuiabá

  2. Marcão Diz

    Parabéns, Eduardo. Mais um show de matéria

    Marco Antônio Raimundo – Marcão – Cuiabá – via grupo de WhatsApp Boamidia

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