Jarudore, seu nome é Estrela do Araguaia ou Posto da Mata

Mato Grosso, dezembro de 2012. Policiais avançam sobre posseiros de mãos calejadas, idosos, portadores de necessidades especiais, crianças, grávidas. A ação é rápida, dura. Em poucas horas uma comunidade inteira foi demolida e sua gente arrancada de suas casas, jogada à margem do caminho. Era a desintrusão da vila de Estrela do Araguaia, mais conhecida por Posto da Mata e dos que viviam na zona rural, numa área de 155 mil hectares nos municípios de Alto Boa Vista, São Félix do Araguaia e Bom Jesus do Araguaia. Os que ocupavam o lugar mansa e pacificamente por quase 40 anos perderam seus bens – inclusive o sonho de viverem com dignidade arrancando da terra o sustento familiar. O lugar foi oficialmente transformado na Terra Indígena Marãiwatsédé, dos xavantes. Em Jarudore, município de Poxoréu a mesma truculência se repetirá. É tudo questão de dias.
Em 28 de junho o juiz federal Victor de Carvalho Saboya Albuquerque, da 1ª Vara de Rondonópolis, determinou que sejam retirados os não indígenas de Jarudore. A tragédia social está anunciada.
Entendam a situação nesta linha do tempo
1896 – A aventura do garimpo de diamante chega ao então leste de Mato Grosso e atrai levas de garimpeiros baianos, goianos, mineiros e de outras regiões. O Morro de Mesa (foto) era a referência geográfica para se chegar à região de Poxoréu.
1924 – São garimpadas as primeiras gemas na área compreendida entre o Morro de Mesa e o rio Poxoréu. A região tornou-se atrativa para a colonização resultando na fundação da vila São Pedro, o que aconteceu em 29 de junho. O nome do lugar, dado por garimpeiros, reverenciava o santo católico do dia.
1924/38 – A vila cresce. Sua localização a transforma em rota obrigatória tanto para garimpeiros quanto para agricultores e pecuaristas. À época regularização fundiária era secundária e na ausência do Estado o documento respeitado por todos era o fio de bigode. Quem estava sobre a terra era seu dono e ninguém discutia quanto a isso no grande vazio demográfico no entorno de Alto Araguaia e das vilas de Alto Garças, Itiquira, Guiratinga, Tesouro, Poxoréu e Rio Vermelho – mais tarde Rondonópolis.
1927 – Um incêndio transforma São Pedro num monte de cinzas e os moradores mudam para as fraldas do Morro de Mesa. Assim surge a vila com o nome de Poxoréu, que é a denominação do principal rio da região.
1929 – O Governo de Mato Grosso destina 3.595 hectares para a vila antevendo sua transformação em cidade.
1938
A vila de Poxoréu emancipa-se politicamente de Cuiabá pelo Decreto 208 de 26 de outubro, assinado pelo interventor federal Júlio Müller (foto).
Luiz Coelho de Campos, o coronel Luizinho, é nomeado intendente do município, que registra bom índice de crescimento graças ao garimpo do diamante, que atrai garimpeiros de várias parte do Brasil.
Na esteira do diamante a cidade ganha comerciantes, pecuaristas, agricultores. O comércio se expande. A noite burbulha nos cabarés onde garimpeiros lavam chão com cerveja.
1939
As Forças Armadas de Adolf Hitler invadem a Polônia. Começa a II Guerra Mundial. A Alemanha nazista aliada ao fascismo da Itália, cria o Eixo e avança sobre a Europa. A guerra ganha contornos mundiais. Cidades são destruídas. Judeus de todas as idades são levados para campos de concentração, onde são executados em câmaras de gás. Os nazistas tentam dominar a União Soviética. Os Estados Unidos pegam em armas depois de um ataque japonês a uma de suas bases no Pacífico.
1942
Submarinos alemães afundam os navios mercantes brasileiros Cabedelo, Buarque, Olinda e outros, na costa do Brasil. Estudantes exigem resposta militar. O presidente Getúlio Vargas rompe relações diplomáticas com a Alemanha e Itália. Posteriormente Vargas declara guerra ao Eixo, mobiliza a Força Expedicionária Brasileira (FEB) e cria a Fundação Brasil Central (FBC).
1943
Vargas teme ataques navais ao Rio de Janeiro. Lança a Marcha para o Oeste vinculada à FBC e ordena ao coronel do Exército Flaviano de Mattos Vanique que encontre uma área na região central para a possível transferência da Capital, do Rio para esse local. Vanique avança em Mato Grosso num trajeto paralelo ao rio Araguaia e funda Nova Xavantina.
1944
Em 20 de junho o marechal Mascarenhas de Moraes, comandante da FEB, embarca os pracinhas para o teatro de guerra na Itália, onde o Brasil escreve páginas de heroísmo.
A decisão de Vargas em lutar contra o Eixo foi demorada, apesar do torpedeamento de navios mercantes brasileiros. O presidente tinha certa simpatia pelos alemães nazistas. Historiadores relatam que sua decisão somente foi tomada após forte pressão dos Estados Unidos, que teriam, inclusive, ameaçado invadirem o Rio Grande do Norte, para operarem em Natal uma base aérea estratégica para voos sobre o Atlântico.
O Brasil teve 25.834 homens e mulheres participando diretamente da guerra nas forças terrestre e aérea nacionais. Desse contingente, 118 eram mato-grossenses. Qualitativamente os conterrâneos do Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon honraram a Bandeira que empunhavam.
No regresso, 14 baixas dos heróis mato-grossenses que tombaram para sempre no teatro das operações na Itália.
1945
Atendendo pedido do Marechal Rondon (foto) a área de Jarudore, de 4.791,33 hectares (corrigida para 4.706 hectares) foi desmembrada de outra, do Estado, pelo Decreto 664, de 18 de agosto, baixado pelo interventor federal Júlio Müller. O objetivo de Rondon era criar um núcleo de suporte ao vaivém dos índios bororos canoeiros que subiam e desciam o rio Vermelho entre suas reservas Merure e Sangradouro/Volta Grande, no cerrado bem distante, na região de General Carneiro, e Tereza Cristina e Perigara, no Pantanal. A mesma função tinha a reserva Tadarimana, de 9.612,69 hectares, também da mesma etnia, mais ao sul, nas imediações de Rondonópolis. Tadarimana, de terra fértil, ao contrário de Jarudore, sempre foi ocupada pelos bororos permanecendo intocável sob tutela da Funai.
1946
O Marechal Eurico Gaspar Dutra, mato-grossense, assume a Presidência. Em parceria com o governador Arnaldo Estevão de Figueiredo a União fortalece a interiorização em Mato Grosso. Colonos mineiros, goianos e nordestinos se espalham pelo vazio na calha do rio Vermelho, na região que ora compreende Rondonópolis, Pedra Preta, Poxoréu, São José do Povo e Guiratinga. Esses colonos criaram vilas localizadas em pontos estratégicos. Jarudore, que era uma estação telegráfica circundada por uma pequena comunidade indígena bororo é um desses exemplos.
1947
Em 26 de junho o governador Arnaldo Estevão de Figueiredo (foto) baixa o Decreto 314 criando a Escola Estadual Franklin Cassiano da Silva.
Essa escola funciona ininterruptamente há 72 anos e formou gerações de jarudorenses.
A Franklin Cassiano da Silva é uma das mais antigas, respeitadas e conhecidas escolas de Mato Grosso. Ela é um dos símbolos da Educação na região e orgulho para muitas famílias que tiveram avós, pais, netos e bisnetos em suas salas de aula.
Sua criação levou em conta a preocupação de Arnaldo Estevão com os agricultores e pequenos pecuaristas contemplados com terras públicas. Ele queria que os filhos dos mesmos não fossem privados da Educação por residirem numa área então remota .
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1958
Em 20 de agosto O Cartório do Registro de Imóveis da Comarca de Poxoréu averba a matrícula 3.547 da área de Jarudore para a Funai.
Em 25 de dezembro o governador João Ponce de Arruda (foto) sanciona a Lei 1.191 criando o Distrito de Paz de Jarudore no município de Poxoréu, com base num projeto de lei do deputado Mário Spinelli (PSP) aprovado pela Assembléia Legislativa.
A emancipação da vila, que se tornou distrito de Poxoréu levou em conta seu crescimento populacional. Esse ato permitiu a criação e instalação de um Cartório do Registro Civil, que lavra escrituras, contratos e procurações, e que registra nascimento e óbito, e faz casamento.
1959
Em 9 de julho o chefe do Serviço de Proteção dos Índios (SPI – antecessor da Funai) da 6ª RI, Alfredo José da Silva, transferiu a área denominada “Aldeia Jarudori”, com 4.706 hectares ao município de Poxoréu, porque o SPI não tinha interesse em sua posse. O ato aconteceu de modo oficial numa Sessão Especial da Câmara Municipal do Poxoréu presidida pelo vereador Manoel Rodrigues de Carvalho, para tratar do assunto. Diante da oferta, os vereadores presentes aprovaram por unanimidade autorização ao prefeito Manoel Dióz Silva para receber a citada área e proceder gestões junto ao governo de Mato Grosso para sua efetiva documentação. O prefeito acatou a decisão da Câmara e registrou o ato em livro próprio do Município. O livro onde se lavrou o ato desapareceu dos arquivos da prefeitura.
1973
Somente o capitão bororo Henrique, a mulher dele, dona Ana, e a filha do casal e professora no distrito, Maria, residem em Jarudore. Os demais de sua etnia abandonaram Jarudore e mudaram para a reserva Sangradouro/Volta Grande. “Capitão” era designação de cacique.
1978
Bororos levam o capitão Henrique e seus familiares para Sangradouro/Volta Grande. Com a saída família, a área onde viviam é ocupada pelo capitão José Luiz Quearuvare – também grafado Kiaruvare –
1981
Em 31 de dezembro o capitão José Luiz Quearuvare qualificado pelo CPF 162.185.401/97 e pela Cédula de Identidade 851.669 expedida pela Secretaria de Segurança Pública de Mato Grosso vende seu sítio de 5 hectares por CR$ 36.533 – moeda da época – para João Antônio Rodrigues, e para tanto lavrou escritura de cessão e transferência de direito de posse no Cartório de Paz do Distrito de Jarudore. O capitão José Luiz Quearuvare mudou-se para o bairro Coxipó, em Cuiabá.
1993
O primeiro prefeito eleito de Rondonópolis, Daniel Martins Moura/1955-59 (foto), num histórico depoimento sobre os primórdios do município, cita Jarudore e os bororos.
Daniel Moura disse que índios ao descerem ou subirem o rio Vermelho o procuravam na prefeitura pedindo mantimentos, remédios, roupas, calçados, pólvora e chumbo para espingardas e que normalmente os mesmos pernoitavam na cidade.
O prefeito também revelou que tanto os bororos da região de General Carneiro quanto os que viviam no Pantanal navegavam sem pressa em rústicas canoas e que costumavam descansar de dois a três dias em Tadarimana e Jarudore.
Tadarimana e Jarudore são banhadas pelo rio Vermelho, que os bororos chamam de Poguba. A primeira fica ao lado do rio Vermelho, que a separa da cidade.
2000
Em 16 de novembro o capitão José Luiz Quearuvare concede coletiva à imprensa em Cuiabá, onde reside e vende ervas medicinais. “Queremos Jarudore de volta”, alerta considerando a possibilidade de lutar por aquela área.
2006
Em 22 de junho a cacique Maria Aparecida Tore Ekureudo (foto), da reserva Sangradouro/Volta Grande chega a Jarudore à frente de um grupo de 32 bororos, ocupa um sítio distante 7 quilômetros da área urbana e cujo posseiro é estranho aos moradores e fixa o cartaz: “Área Indígena Aldeia Nova Bororos”. No dia 25 o procurador da República em Mato Grosso, Mário Lúcio Avelar, e o procurador Federal Cezar Augusto Lima Nascimento, representando a Funai, ingressam com uma Ação Civil Pública com pedido de liminar de antecipação de tutela específica, ao juiz da 3ª Vara da Justiça Federal em Cuiabá, César Augusto Bearsi, pela reintegração da área de Jarudore aos bororos.
Em 13 de novembro a Assembleia Legislativa realiza em Jarudore Audiência Pública (foto) requerida pelo deputado Zé Carlos do Pátio (PMDB) na tentativa de encontrar solução para a disputa pela posse da terra entre índios liderados pela cacique Maria Aparecida Tore Ekureudo e os moradores na área.
Em 26 de dezembro um fato atípico aconteceu na região: o caminhão do então genro de Tore Ekureudo, João Osmar Lopes, o “Gaúcho”, 47 anos, foi incendiado e ele desapareceu. A imprensa noticiou o fato como “Sequestro de líder bororo”. Um dia depois Gaúcho reapareceu sem nenhum ferimento e o assunto esvaziou-se. Gaúcho não é mais genro da cacique e atualmente reside na cidade de Primavera do Leste. Pela proximidade de Jarudore com Rondonópolis a ação passou a tramitar na Justiça Federal daquela cidade.

Encravado num ponto equidistante entre Poxoréu e Rondonópolis, habitado por uma população estimada em 1.650 habitantes, que se renova com a natural sucessão de suas gerações, o Distrito de Jarudore, no município de Poxoréu é uma das comunidades mais antigas da região sul.
A rotina de harmonia em Jarudore não é a mesma, desde meados de 2006, quando uma ação civil pública movida pelo procurador da República, Mário Lúcio Avelar, pediu a devolução de sua área global aos índios bororos, e paralelamente a isso, uma cacique liderando alguns indígenas ocupou um sítio nas imediações do perímetro urbano iniciando uma disputa agrária sem pé nem cabeça e na contramão da realidade social mato-grossense. Os moradores não desgrudam os olhos da curva da estrada temendo que a qualquer momento chegue o oficial de justiça e os jogue na sarjeta.
O cenário em Jarudore é o mesmo que se verifica em várias outras áreas urbanas e rurais de Mato Grosso pela política de expansão das terras indígenas para atender interesse estratégico e o colonialismo europeu e norte-americano com as bênçãos de ONG’s.
Jarudore é uma gleba de 4.706 hectares titulada pelo Governo de Mato Grosso à Funai, mas ocupada mansa e pacificamente há mais de setenta anos por pequenos produtores rurais e moradores urbanos. Boa parte dos moradores descende dos posseiros pioneiros, que nos anos 1940 ali se instalaram enquanto beneficiários do programa de ocupação do vazio demográfico desencadeado pelo governo estadual com apoio da União. Bororos que residiam naquela área a abandonaram gradativamente migrando para as grandes reservas de sua etnia na região e até para Cuiabá.
Na década de 1970 os últimos índios saíram de Jarudore. Porém, em 2006, o religioso salesiano Mário Bordignon, conhecido por Mestre Mário e ligado ao Conselho Indigenista Missionário (Cimi), entrou em cena estimulando os bororos da região de Poxoréu à retomada da área Jarudore.
Mestre Mário passou a frequentar Jarudore no começo de 2006. Acompanhado por um grupo de homens fez um levantamento da situação socioeconômica e a partir de então a tranquilidade local cedeu lugar ao medo e a segurança de viver em paz naquela área virou incerteza.
A investida contra os 1.650 posseiros e seus familiares ali residentes colheu Jarudore de surpresa, pois aquela tradicional comunidade acreditava que mais dia menos dia o Estado comporia com a Funai compensando-a com outra área destinada aos bororos, para que o status quo fosse mantido.
Eduardo Gomes – blogdoeduardogomes
FOTOS:
1 e 2 – Eduardo Gomes
3, 7, 9 e 10 – Governo de Mato Grosso
4 – Youtube
5, 6 e 8 – Biblioteca Nacional
11 – Museu Rosa Bororo – Rondonópolis
12 – Assembleia Legislativa
13 – Marcos Negrini
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